I
Os termômetros de Porto Alegre marcavam 39,7 graus naquela tarde de 24 de dezembro. O sistema de ar-condicionado do shopping já não dava conta de amenizar o bafo e esfriar os ânimos predispostos à hostilidade diante do calor infernal. Os desejos de um feliz Natal e um próspero Ano Novo foram trocados por comentários queixosos e súplicas para o milagroso surgimento de uma massa de ar polar que derrubasse a temperatura — sem dúvidas, o melhor presente!
Pra Jorge, no entanto, o sofrimento era dobrado. Encharcado pelo suor debaixo do traje de Papai Noel, ajeitando-se de um lado a outro no trono pra amenizar a dor provocada pela assadura em suas partes íntimas, ele contemplava o cenário ao redor, forçando a imaginação a fim de que o corpo fosse ludibriado: as copas dos pinheiros cobertas pelo manto dos flocos de neve, os sorridentes bonecos de neve estendendo seus bracinhos feitos de galhos aos visitantes… tudo falso, verdade, mas a ideia de neve por todos os lados, ainda que de isopor salpicado, trazia-lhe algum conforto.
Ele olhou pra fila: havia em torno de umas trinta crianças aguardando por uma balinha e uma foto com o Papai Noel. Era o suficiente pra fechar a jornada de seu último dia de trabalho. Solicitou que uma das ajudantes encerrasse os atendimentos a partir da trigésima terceira criança e chamou pelas próximas.
— Ho ho ho!
— Papai Noel feio! — observou um dos pequenos, puxando a barba postiça da fantasia.
— Já mandou a cartinha deste ano?
— Papai Noel magrinho! — complementou outro, beliscando o braço de Jorge.
— O que vai querer de presente neste Natal?
— Papai Noel velho! — acrescentou um terceiro, apalpando o rosto do fatigado trabalhador.
E tão logo sentou no colo do Papai Noel de mentirinha, a criança seguinte limitou-se a chorar aos berros e a socar o peito do pobre homem, que a esta altura ansiava apenas por um cigarro e um copo de cerveja gelada.
II
Jorge apoiou-se sobre os punhos cerrados na pia do vestiário. Admirou a face ressequida e enrugada por trás da barba e das sobrancelhas brancas no espelho. Falsas, como tudo mais referente ao Natal. Mas… e o próprio rosto acabado? Combalido pela força da vida. Também era falso?
Não, o rosto era autêntico. Era feio mesmo, como bem observara uma das crianças. Chegava a ser chupado de tão magro. Nem os menorzinhos já engoliam um Papai Noel reto feito uma tábua. Não se conformava, porém, em ser chamado de velho. Não era um. Não se sentia assim. Contava apenas cinquenta e oito natais e tinha vitalidade o bastante pra mais uns vinte, embora detestasse a data.
Ainda com os olhos fixos no próprio reflexo, perambulou entre lembranças e pensamentos, procurando entender a razão de tamanha ojeriza pelas festas de fim de ano. Não era bem um sentimento de repulsa, estava mais pra uma sensação melancólica, quase deprimente. Um estado nostálgico que lhe dava, não raro, vontade de lacrimejar.
Rememorou alguns episódios peculiares nas comemorações natalinas de sua infância. Imagens vagas, fora de ordem, granuladas como num filme Super-8. O avô, inspetor de polícia aposentado, dando tiros pro alto na hora do foguetório até descarregar seu calibre .38 (sempre se perguntava aonde aquelas balas cairiam na volta). Um leitão servido na mesa, com cabeça e tudo, ostentando uma maçã ridícula na boca (nunca mais comeu a carne de qualquer animal servido de corpo inteiro — nem mesmo frango assado). E a pior de todas: um parente, um tio ou alguém que ele nunca soube, usando uma máscara de plástico medonha do Papai Noel, provocando-lhe um medo desesperador (uma experiência traumática, terrível).
Abriu a torneira e jogou água sobre o rosto, massageando os olhos.
Estava demasiadamente exausto pra trocar de roupa, então atirou a mochila dentro do saco de presentes, todos falsos, como falsa era sua barba e falso era o cenário de Polo Norte em que trabalhara nas últimas semanas, e decidiu ir embora fantasiado mesmo.
Devia estar um mormaço de Saara lá fora, mas era uma caminhada de apenas meia hora até sua casa. Com sorte, quem sabe não derretesse por completo no meio da caminhada?
III
O sol já estava prestes a tocar a linha do horizonte, mas as ruas continuavam apinhadas de gente e de carros, consumidores atrasados, todos dispostos a enfrentar as lavaredas do bârátro em nome das compras de última hora.
A alguns transeuntes, não deixava de ser estranho cruzar com um Papai Noel escorrendo suor, delgado feito um cajado, perdido em reflexões enquanto fumava com gosto um cigarro de filtro vermelho — uma figura que destoava completamente das propagandas da Coca-Cola. Motoristas mais debochados buzinavam e gritavam de suas janelas:
— Vai desaparecer caminhando nesse calor, Papai Noel.
— Cadê o trenó e as renas?
Mas Jorge seguia em frente, alheio à crueldade da multidão urbana, absorto em reflexões, como um andarilho que vaga pelo deserto em estado de absoluta amnésia, ouvindo internamente as cordas melancólicas de um violão sorumbático e as notas estridentemente solitárias de uma gaita de boca chorosa.
Percorreu diversos quarteirões, submerso neste transe melódico e introspectivo, suando cascatas, atravessando as vias sem nem olhar para os lados, até ser trazido de volta ao mundo exterior por cantigas natalinas que agrediam os tímpanos sob o chiado de alto-falantes baratos pendurados na fachada de uma loja de roupas. O ruído do vento no deserto, o slide deslizando sobre o violão, a escala diatônica da gaita, sons tão confortáveis, cediam espaço para notas de xilofone, sinetinhas ao fundo e um coral de vozes infantis entoando hinos tradicionais entremeados por anúncios publicitários.
Querer ver você não chorar, não olhar pra trás, não se arrepender do que faz…
— Nesse calorão, use roupas de verão! Biquínis e maiôs, tudo em promoção.
Que o Natal existe, que ninguém é triste e no mundo há sempre amoooor.
Jorge cambaleou, um tanto desorientado, imaginando que em seu tempo montavam presépios no saguão ou no pátio das igrejas em celebração ao nascimento de Cristo. Ovelhas e burricos, os três reis magos, José e Maria, todos ao redor de Jesus-bebê na manjedoura, iluminados pela estrela-guia e sob a égide do Espírito Santo.
Não era religioso, mas prosseguiu levando consigo, além do saco que lhe pesava nas costas, uma pontada de perturbação. Hábitos vêm, costumes vão, pensou, reparando que já era noite, que os termômetros não davam trégua e que não se enfeitavam mais as fachadas das casas com luzinhas piscantes e coloridas, tal qual faziam antigamente.
Resolveu parar e retomar o fôlego. Acendeu um novo cigarro, encostou-se num poste, contemplou as pichações na parede de um prédio do outro lado da rua. Uma frase se destacava entre as demais, escrita em tinta spray dourada com letras garrafais: DESTA MASSA FECAL, EU QUERIA SER A DESCARGA.
Segurou a fumaça nos pulmões por algum tempo. Quando finalmente a expeliu, um discreto sorriso lhe foi desenhado no canto dos lábios.
IV
Do lado de fora, um letreiro antigo, feito de uma placa branca de acrílico que contrastava com a tipografia preta, da qual faltavam algumas letras, e com o colorido dos logotipos de algumas marcas nacionais de cerveja, anunciava: Boteco do Na_ali_io.
No interior do bar, uma cena não muito diferente do que costumava presenciar nas demais noites do ano. Por trás do balcão, o proprietário folheava o jornal e mastigava um palito de dentes. Ao fundo, entre a mesa de sinuca desnivelada e a jukebox de músicas bregas, o bêbado da vizinhança dormia com a cabeça jogada pra trás do corpo, roncando mais alto que o motor do freezer. Mais à frente, perto de uma das janelas escancaradas, uma senhora que Jorge tratava na intimidade como “a velha”, outra cliente assídua da bodega, não tirava os olhos do celular, nem mesmo quando apanhava a garrafa de cerveja pra encher novamente o seu copo. As mesas restantes estavam vazias.
— Ho ho ho! — anunciou-se Jorge, jocoso.
Ninguém desviou a atenção pra ele, a despeito da fantasia vermelha e surrada.
— Caramba, que calorão! Deve estar uns 40 graus lá fora — complementou, enquanto aprumava-se junto ao balcão.
— 39,7 — respondeu a velha, sem despregar os olhos do celular. — Foi a máxima de hoje.
Jorge não reagiu.
— Uma gelada? — perguntou o dono do bar, procurando um motivo válido pra se levantar do banco que sustentava seu corpo de obeso.
— Por favor! — replicou o cliente vestido de Papai Noel.
— Não pretendo me estender hoje porque, afinal de contas, é Natal. E eu não quero passar minha ceia todo sujo, grudando debaixo desse traje ridículo.
— Vai receber os parentes?
— Que nada! Não tenho ninguém pra receber. A ideia é passar defronte à tevê, refrescando a garganta e assistindo à Missa do Galo.
— Pois eu queria estar no hemisfério norte, vendendo conhaque num pub de algum povoado que estivesse abaixo de zero.
— Algum poeta americano escreveu certa vez: “Uma estrela está tão longe quanto o olho consegue enxergar e tão perto quanto o meu olho está de mim”. Algo assim.
— Não parece um poema — interrompeu a velha, ainda sem desviar da tela do celular. — Não tem rimas.
— Bem, rima no original, em inglês — respondeu Jorge, tomando o seu primeiro gole de cerveja logo em seguida.
V
Jorge perdera a conta de quantas cervejas bebera quando olhou para o relógio pendurado na parede e percebeu que faltavam uns poucos minutos para a meia-noite. Tomou o último copo de um só talagão e depositou sobre o balcão uma quantia de dinheiro que ultrapassava o valor correspondente ao seu consumo.
Despediu-se com um aceno mudo e percorreu meio caminho até a saída antes de interromper os passos. Refletiu durante uma volta completa do ponteiro. Sacudiu a cabeça em desaprovação. Balançou os ombros. Por fim, dirigiu-se ao banheiro.
Retirou a mochila do saco e apanhou um frasco de desodorante. Perfumou as partes do corpo que mais necessitavam de asseio. Alinhou o traje de Papai Noel da melhor maneira que pode e ajeitou a barba e as sobrancelhas falsas no rosto. Deixou o gorro em ordem sobre os cabelos.
Quando retornou, andou direto até a jukebox. Repassou o catálogo, impaciente com as opções musicais: pagode, sertanejo, gauchesca, pop rock, nada lhe agradava. Finalmente, decidiu por um álbum chamado Versões instrumentais de canções natalinas para dançar a dois.
Quando bateu a meia-noite, já estava diante da mesa da velha, que, pela primeira vez, desviou os olhos do aparelho celular e viu que o homem fantasiado de Papai Noel sorria e estendia-lhe a mão.
— Me concede o prazer de uma dança? — perguntou ele.
Ela retribuiu o sorriso. Aceitou o convite.
Um tanto atrapalhados, às gargalhadas, começaram a dançar no saguão da bodega, enquanto o proprietário ainda folheava o jornal, o bêbado dormia o sono dos ébrios, a música era encoberta pelo foguetório nos céus da cidade e os termômetros seguiam beirando os 40 graus Celsius.
Confira uma análise detalhada desta história em forma de podcast feita pela IA:

Este conto foi autopublicado na coletânea “Insomnie e outros delírios da cabeça (um roteiro de curta-metragem e três narrativas breves)”, e está disponível para venda na Amazon.