Os Meus Fantasmas das Estações

por Diego Quadros
13 minutos de leitura

Desço do ônibus na Estação Rodoviária. Cinco minutos pra fumar um crivo e mais dez pra fotografar os transeuntes à moda espião, disfarçadamente, como se fosse possível disfarçar o meu ataque à privacidade alheia com um trambolho desse tamanho nas mãos. A lente não é das maiores: uma 35mm, porque em situações corriqueiras eu gosto de chegar e — plaft! — disparar o obturador na cara das pessoas.

Um gigante passa por mim: dois metros de altura por uns três de largura. Me olha desconfortável, quase mal encarado, só que a fisionomia denuncia: é um gigante bonzinho, inofensivo, de bem. Se resolvesse me sentar a mão, eu tava fodido, me enterrava facinho no chão. Atrás dele, vem uma menina, uma jovem senhora, mãe precoce, não sei como definir exatamente, aguentando dois bebês em seu colo, equilibrando-os em seus mirrados bracinhos. Não parece se importar com minhas fotos e desce as escadarias em direção ao túnel do metrô a passos firmes e largos. Deve ter coisa mais importante pra fazer, e eu não tiro a razão.

Apanho o celular da bolsa e me dou conta de que já tô atrasado pro trampo. Ainda que eu corra e pegue o trem das 12h45, chego com meia hora de atraso, mas um camarada sentado sobre o cordão da calçada, de costas pro asfalto e todo seu tráfego neurastênico, me chama a atenção. O trabalho que se foda! Chego até o camarada e peço um retrato. Ele dá um gole na cachaça barata abrigada numa garrafa plástica, me olha com cara de quem diz tu tirando uma com minha cara, né?, mas eu não desisto e peço outra vez, posso tirar uma foto? Ele pergunta tem um cigarro? Dou dois cigarros pra ele. Ele diz certo, pode tirar dois retratos.

Enquadro uma composição bacana, aperto o botão uma vez e… merda! Um ônibus passa bem na hora e caga a fotografia, minha obra, minha arte. Tiro de novo, e agora múltiplas fileiras de automóveis se espalham por toda a imagem… Porra, desisto. Também não quero abusar da boa vontade de meu paciente modelo. Pergunto seu nome, ele responde. Agradeço e tô prestes a rumar pra estação quando um cara me aborda.

Com licença, ele diz, eu vi o que tu tava fazendo, ele segue, e preciso dizer que acho muito bonita essa iniciativa, ele conclui. Fico surpreso, até lisonjeado, pra falar a verdade. Tenho uma monte de histórias legais no currículo desde que comecei com essas fotos nas ruas, mas poucas são desse tipo assim que enobrecem a atividade. Falo obrigado e ele dá a morta: lá na escadaria da Duque com a André da Rocha, sabe? Então, lá vive um senhora sem teto, mora na escadaria mesmo, acho que seria interessante tirar umas fotografias dela e dar importância, dignidade, visibilidade a essas pessoas não vistas pela maioria de nós. Prometo que vou sim, e dou muito, muito obrigado pela gentileza, pela consideração. Eu sei que não vou (talvez até vá algum dia); gosto de retratar pessoas, especialmente as invisíveis, mas prefiro congelar em imagens os meus fantasmas das estações do metrô.

O fantasma de cabelos roxos e ukulele

Costumo embarcar na Estação Rodoviária porque no túnel que leva à plataforma há um mural de fotografias que venceram o concurso promovido pela Trensurb (a empresa responsável pelo metrô da minha cidade). Curto ficar admirando as imagens sempre que passo por ele. São retratos bonitos, e é uma pena que esse concurso tenha se encerrado pouco antes de eu perder meu carro e minha carteira de habilitação e precisar usufruir do transporte por linhas férreas pra me locomover ao trabalho. Caso contrário, as minhas fotografias dos fantasmas das estações certamente arranjariam um espaço de destaque nesse painel.

Tenho a impressão de que a Rodoviária também é a estação onde se encontram os fantasmas mais peculiares e pitorescos. Tomem o exemplo de agora, que se passa exatamente no momento em que narro os fatos. Galgo os degraus que ascendem à plataforma (os trilhos do trem em minha cidade não são subterrâneos, e as escadas rolantes — em quaisquer estações — nunca funcionam) e imediatamente avisto essa guria, talvez na casa dos 17 anos, sentada no chão, encostada numa das pilastras, usando um chapéu-coco, de onde escapam cabelos roxos, e tocando dois ou três acordes monotonamente repetitivos que só não se espalham pelas ruas porque eu sei que ela é mais um dos fantasmas.

Saco minha câmera e a disparo inúmeras vezes a fim de captar todos as nuances da performance. A fantasma me olha de soslaio, prende um sorriso, talvez querendo manter a espontaneidade da cena, prossegue nos três acordes. Deve ter aprendido a tocar ouvindo Ramones. Chego mais perto e agacho, mantendo meus olhos no nível dos dela. Tudo bem? Te importa em posar pra um retrato? Claro que não, ela responde, se levantando e se posicionando de modo que eu possa deixar os trilhos do trem em segundo plano.

Gostei do cabelo, eu digo. Obrigada, ela responde. Comento que ela parece simpática, sorridente, até exótica demais pra uma assombração. Não gosto de assustar as pessoas, ela responde, e segue afirmando que prefere espalhar música e bons fluídos pelas estações e vagões por onde passa. Questiono se isso não parece inútil, visto que ela é um fantasma e que, tirando outros não vivos como eu, dificilmente alguém escutaria aqueles três acordes que ela dedilhava. Ela desvia o olhar pros trilhos, reflete por alguns instantes, e então pergunta por que eu tiro fotografias. Aí eu começo uma palestrinha:

Acho que é meio que porque eu morri em vida. Há meses virei um alcoólatra e também me viciei em cocaína. Todas as tardes, após sair do trabalho, eu fotografo o que surge diante dos meus olhos, talvez por sentir que a Morte de fato está prestes a me buscar e por querer deixar um registro do que vi e testemunhei nestes breves anos, depois vou pra algum bar do qual ainda não tenha sido banido por virar persona non grata e encho a cara até ficar louco. Na sequência, vou pra um conjunto habitacional, uma espécie de microCohab que tem lá na Azenha, abro o portão e sou seguido por um pelotão de dezenas de ratazanas como se fosse o flautista de Hamelin, espero 15 minutos na fila até os traficantes liberarem um novo lote, gasto tudo o que tenho nos pinos e encho o nariz de pó até não aguentar mais. Não durmo há meses, meu dinheiro acabou, tô afundado em dívidas, minha filha tem só três anos e eu mal consigo passar um tempo com ela, perdi meu carro há três meses após as multas de recusa ao bafômetro ultrapassarem o valor do próprio veículo, ando platonicamente apaixonado por uma atriz de cabelos vermelhos até a cintura que trabalha de garçonete à noite num dos bares que frequentava até ser proibido de voltar, meus problemas no trabalho me renderam um Processo Administrativo Disciplinar, meus dentes estão se quebrando, sinto palpitações no coração com frequência, em suma, eu tô todo fodido. Então acho que tiro fotografias de outros mortos porque, assim, não me sinto sozinho. No fundo, acho que fotografo pra me sentir meio vivo. Sei lá.

Ela franze o cenho, sorri e comenta que a minha resposta responde o meu próprio questionamento.

Do longe, a conversa é cortada por aquele assovio calafriante do ferro das rodas com o ferro dos trilhos. Me despeço da assombração de cabelos roxos e ukulele, já tô atrasado pacas pro trabalho, mas ela afirma que vai me acompanhar na viagem porque esse é o das 13h13. E o que tem de especial no das 13h13? pergunto. Esse é o trem fantasma do Vanderlei, ela responde.

O trem fantasma do Vanderlei

De fato, reparo que nenhum dos vivos à espera na plataforma entra no trem das 13h13. Embarcamos no último vagão. Não sei por quê, mas tenho alguma preferência esquisita pelo derradeiro dos carros. Talvez seja por receio de que o trem do sentido norte bata de frente no de sentido sul, ou vice-versa, diz a assombração de cabelos roxos e ukulele, após ler meus pensamentos. Eu já te falei que meio que morri em vida, retruco. É, mas também meio que vive na morte, ela treplica.

Desisto da conversa pra reparar melhor nos passageiros do trem fantasma do Vanderlei. Não diferente da vida, percebo que os trens do além pelo jeito também ficam sempre lotados. A maioria eu não conheço. Quase todos, pra falar a verdade. Mas alguns rostos me são familiares, e um deles em especial me causa arrepios.

Conhece ele? pergunta minha acompanhante. Sim, é o fantasma do Ghost. Quem? ela reforça. O fantasma do Ghost. No filme Ghost — do Outro Lado da Vida, tem uma cena que se passa no metrô, dentro de um trem, e o Patrick Swayze encontra um fantasma sinistro e ranzinza igual a esse cara aí, de olhos esbugalhados, careca no topo e com cabeleira de Ravengar ao redor da cabeça. Quem é Ravengar? ela novamente pergunta. O Ravengar, explico, o Antônio Abujamra, aquele personagem que era vilão na novela Que Rei Sou Eu? Não conheço, ela diz, dando de ombros. Porra, mas tu morreu antes de 1989? Não, ela responde, eu nasci em 1989. Morri em 2006. Que seja, digo. Ele também me lembra o Gargamel… esse é dos Smurfs. Esse eu conheço, ela sorri.

Tentei fotografar ele várias vezes, continuo, mas ele sempre me olhava de tal jeito como se fosse se apossar do meu corpo e me jogar debaixo de um trem pra ser triturado. Só consegui uma vez, e isso porque ele tava dentro de um vagão, de frente pro vidro da porta, e eu numa plataforma, do lado de fora. É foda, esse cara é sinistrão pacas. Deve ter sido uma pessoa que não valia nada em vida, e agora fica aí, condenado a penar em morte, eu acho.

Besteira, ela corta. Nós vagamos por aí, de estação em estação, de vagão em vagão, às vezes até pelos trilhos, porque gostamos de circular pela ferrovia. Um dia o trem da Morte vai vir pra nos levar definitivamente pro outro lado. Dizem que é um trem que só circula à madrugada, bem depois que as estações fecham e os trens da vida param de circular, e que leva as almas preparadas pra partir até depois da Estação Mercado, onde supostamente deveria ser o fim da linha.

Fico pensando a respeito por um tempo. De fato, aquela escuridão pra além dos trilhos da Estação Mercado sempre me passou algo sobrenatural, não sei bem se sombrio, mas de toda forma perturbador. Pra onde aquela linha levava ao passar pelas trevas? As abissais profundezas do báratro? As reluzentes passagens do éden? O purgatório de Dante?

Cara, para de perder tempo pensando bobagens, diz a de cabelos roxos e ukulele, e aproveita que estamos chegando na Estação São Pedro pra te divertir com os anúncios do Vanderlei.

Boooom diaaaa, senhoras e senhores do além! Ao contrário do que fala a canção do Ozzy, nós não vamos sair dos trilhos nesse louco trem. Estaçããããoooo São Pedrooooo!

Gargalho com a intervenção do condutor. Porra, é o anúncio mais very crazy e animado que eu já ouvi. O Vanderlei também é um fantasma? pergunto. E dos bons, cabelos roxos responde. Procuro pegar o trem dele pelo menos uma vez por dia, pra recarregar meu estoque de bons fluídos. E ela tem razão. Escutar aquela voz chiada e alegre, como um radialista de uma estação AM numa vinheta do tipo “Sorriaaa, a Rádio Caiçara é alegriaaaa” é de certa forma revigorante.

A viagem vai durar por mais uns dez minutos, e vou ter mais umas seis ou sete oportunidades de me divertir com os anúncios do trem fantasma do Vanderlei antes de descer na Estação Canoas, a mais movimentada da minha rotina, e fotografar dezenas de fantasmas do dia a dia.

Os fantasmas do dia a dia

Dou um até a próxima, bom te conhecer, pra cabelos roxos, desço e corro até a dianteira do trem fantasma pra conhecer também o Vanderlei. É um senhor com cara de moleque, pele negra e cabelos brancos, sorriso maior do que o rosto. Posso tirar um retrato, Vanderlei? Claro, responde, expandindo o sorriso pra até onde uma assombração é capaz de fazer. Registro o que considero uma das minhas melhores fotos de até então, o meu instante decisivo supremo. Cartier-Bresson era mestre, e seus instantes decisivos por certo estão entre os melhores da história, mas os meus instantes decisivos — e só eles — são capazes de congelar as vidas de meus fantasmas no tempo da morte e eternizar o que já se encontra eterno, mas que nunca é visto pela maioria de nós, nessa merda que chamamos de dia a dia.

Aceno a cabeça em sinal de agradecimento. O condutor repete o gesto em retribuição, e logo o trem fantasma do Vanderlei se torna apenas uma lembrança agradável desse início de semana laboral. Aliás, porra, me dou conta de que já tô atrasado uns 40 minutos pro trabalho. Meu chefe vai ficar puto e tal, mas quer saber? Que se foda!

Olho ao redor. Quantos fantasmas pra imortalizar. Quantas não vidas despercebidas! Logo à minha frente, duas mulheres e suas crianças indígenas aguardando o próximo trem fantasma, decerto pra pedir o que comer de vagão em vagão. Estão mal agasalhadas, todas elas, assombrações mulheres e assombrações crianças, e que sorte que já estão mortas, eu penso, porque estamos no inverno e tá um frio do caralho. Uma das crianças indígenas, a menorzinha delas, vai em direção a um banco onde um rapaz, um estudante, e esse sim um vivo, não um morto nem um não vivo, está sentado comendo seus pães de queijo. A criança se estende pelo banco, põe a cara quase no pacote de pães de queijo, mas o rapaz a ignora como se ela nem existisse, o que não me é surpreendente, afinal, ela é só mais um dos fantasmas que transitam por ali, na Estação Canoas, como quase todos os outros, diariamente. Penso na merda que é passar fome a vida inteira, e depois passar fome por toda uma eternidade no além. Será o que o Inferno é pior do que isso?

E por falar nele, mais adiante tem um pastor evangélico que acha que gritando trechos da Bíblia vai impedir que os já ali condenados acertem suas contas com o senhor das barbáries. De que será que morreu esse cara? É novo, ao contrário da senhorinha ao seu lado, que arrasta duas sacolas enormes e infladas, toda curvada pelo tempo e pelo cansaço que deve ter trazido da outra vida. E assim vou fotografando cada assombração com quem cruzo pelo caminho, na plataforma, na escadaria, na passarela, rumo a uma caminhada de 15 minutos até o serviço.

E nem lá o metrô me abandona: meu setor fica no térreo, a porta de frente pros trilhos, e da minha mesa, onde atendo a outras dezenas de fantasmas — estes, porém, ainda vivos — posso ver de cinco em cinco minutos os trens prateados que cruzam de norte a sul, de sul a norte, fazendo a algazarra ensurdecedora de sempre, levando sabe-se lá quantas outras almas penadas de uma estação a outra.

E assim toco meus dias, sentindo que a Morte está próxima, ciente de que em breve ela pode me pegar pela mão, mas eu pouco me importo. Quem sabe um dia desses eu não salte da plataforma e caminhe pelos trilhos em direção à escuridão que existe além da Estação Mercado, a que marca definitivamente o fim da linha?

Quem sabe quantas cenas bacanas podem ser fotografadas do lado de lá?


Confira uma análise detalhada desta história em forma de podcast feita pela IA:


Capa da antologia "Fim da Linha - Volume 2", do selo editorial Ficções Pulp!, mostrando um vagão de metrô sendo conduzido por uma cauda de baleia contra um céu escuro do qual surge um meteoro incandescente.

Este conto foi publicado originalmente no volume 02 da antologia “Fim da Linha”, do extinto selo editorial independente Ficções Pulp!, ao lado de diversos contos de outros autores. Se você quiser conhecer esta obra, ela está disponível por um preço módico na Amazon.

Antologia sensacional, autores que aliam a capacidade imaginativa com a busca por uma escrita de qualidade. Traduções excelentes, organização cuidadosa.

Marcela

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