O Hipnotizador, de Ambrose Bierce

por Diego Quadros
8 minutos de leitura

Publicado originalmente como “John Bolger, hipnotizador”, no jornal San Francisco Examiner, em 10 de setembro de 1893.

 Aqueles de meus amigos cientes de que, às vezes, eu me divirto com hipnotismo, leitura de mentes e fenômenos afins, frequentemente me perguntam se tenho uma concepção clara da natureza de qualquer princípio subjacente a eles. A tal pergunta, respondo que não tenho nem desejo ter. Não sou nenhum investigador com o ouvido atento à fechadura da oficina da Natureza, tentando com curiosidade vulgar roubar os segredos de seu ofício. Os interesses da ciência são tão pequenos para mim como os meus parecem ter sido para a ciência.

Sem dúvida, os fenômenos em questão são bastante simples e de forma alguma transcenderiam nossos poderes de compreensão, se apenas encontrássemos a chave. Mas, de minha parte, prefiro não encontrá-la, pois sou de uma disposição singularmente romântica, obtendo mais gratificação do mistério do que do conhecimento. Quando eu era criança, costumava-se observar que meus grandes olhos azuis pareciam ter sido feitos mais para olhar para dentro do que para fora: tal era sua beleza onírica e, em meus frequentes períodos de abstração, sua indiferença pelo que acontecia ao redor. Nessas peculiaridades, eles se assemelhavam, atrevo-me a pensar, à alma que está por trás deles, sempre mais atenta a alguma bela concepção criada à sua própria imagem do que preocupada com as leis da natureza e a estrutura material das coisas. Tudo isso, por irrelevante e egoísta que possa parecer, é relatado para explicar a escassez de luz que sou capaz de lançar sobre um assunto que chamou tanto a minha atenção, e sobre o qual há tão aguda e geral curiosidade. Com meus poderes e oportunidades, outra pessoa pode, sem dúvida, ter uma explicação para boa parte do que apresento simplesmente como narrativa.

Meu primeiro conhecimento de que possuía poderes incomuns veio a mim em meu décimo quarto ano, ainda na escola. Ocorrendo um dia ter esquecido de levar meu almoço, olhei com apetite para uma menina que se preparava para comer o dela. Ao erguer o rosto, seus olhos encontraram os meus e ela pareceu incapaz de desviá-los. Depois de um momento de hesitação, aproximou-se de maneira distraída e, sem dizer uma palavra, entregou sua cesta com o conteúdo tentador e foi embora. Inexplicavelmente cedida, aliviei minha fome e destruí a cesta. Depois disso, não tive o trabalho de trazer almoço para mim: aquela menina era minha fornecedora diária; e, não raro, ao satisfazer minha simples necessidade de seu estoque frugal, eu combinava prazer e lucro obrigando sua presença no banquete e fazendo uma oferta enganosa dos alimentos, que acabava consumindo até o último pedaço. A menina sempre era convencida de que comera tudo sozinha; e, mais tarde, suas queixas chorosas de fome surpreendiam a professora, divertiam os alunos, rendiam para ela o apelido de Estômago Furado e me enchiam de uma paz além da compreensão.

Um aspecto desagradável dessa condição, de resto satisfatória, era o sigilo necessário: a transferência do almoço, por exemplo, tinha de ser feita a alguma distância da multidão enlouquecida, em um bosque; e fico ruborizado ao pensar nos muitos outros subterfúgios indignos decorrentes da situação. Como eu era (e sou) de uma disposição naturalmente franca e aberta, isso se tornou cada vez mais enfadonho, e se não fosse pela relutância de meus pais em renunciar às vantagens óbvias do novo regime, eu teria voltado com prazer ao antigo. O plano que finalmente adotei para me libertar das consequências de meus próprios poderes despertou um grande e agudo interesse na época, e aquela parte que consistia na morte da garota foi severamente condenada, mas dificilmente seria pertinente ao âmbito desta narrativa.

Por alguns anos depois disso, tive poucas oportunidades de praticar o hipnotismo; os pequenos ensaios que fazia eram comumente desprovidos de outro reconhecimento além do confinamento na solitária com uma dieta à base de pão e água; às vezes, rendiam-me apenas o azorrague. Foi quando eu estava para sair do local dessas pequenas decepções que meu feito mais importante foi realizado.

Fui chamado ao gabinete do diretor e recebi um terno de civil, uma pequena soma em dinheiro e muitos conselhos, os quais, devo confessar, eram de qualidade bem melhor do que as roupas. Enquanto atravessava o portão para a luz da liberdade, virei-me repentinamente, e, olhando seriamente nos olhos do diretor, logo o tive sob controle.

— Você é um avestruz — eu disse.

No exame post-mortem, o estômago revelou conter uma grande quantidade de artigos indigeríveis, principalmente de madeira ou metal. Presa no esôfago, e constituindo, de acordo com o legista, a causa imediata da morte, uma maçaneta.

Eu era, por natureza, um filho bom e afetuoso, mas, enquanto tomava meu rumo para o grande mundo do qual estivera isolado por tanto tempo, não pude deixar de lembrar que todos os meus infortúnios fluíam como um riacho da economia mesquinha de meus pais em matéria de almoços escolares; e eu não possuía nenhuma razão para pensar que eles haviam mudado.

Na estrada entre Succotash Hill e South Asphyxia, há um pequeno campo aberto que outrora continha uma choupana conhecida como A Casa de Pete Gilstrap, cuja ocupação era matar viajantes. A morte do Sr. Gistrap e o desvio de quase todas as viagens para outra estrada ocorreram praticamente ao mesmo tempo, de tal modo que ninguém jamais foi capaz de dizer qual fora a causa e qual fora o efeito. De qualquer maneira, o campo agora era uma desolação, pois o lugar havia sido queimado. Foi enquanto caminhava para South Asphyxia, o lar de minha infância, que encontrei meus pais a caminho da colina. Após amarrarem sua carroça, eles almoçavam sob um carvalho no centro do campo. A visão do almoço trouxe lembranças dolorosas de meus dias de escola e despertou o leão adormecido em meu peito. Aproximando-me do casal culpado, que imediatamente me reconheceu, ousei sugerir que pudesse compartilhar de sua hospitalidade.

— Desta alegria, meu filho — disse o autor de meu ser, com pomposidade característica que a idade não murchara — há o suficiente para apenas dois. Não sou, espero, insensível à luz da fome em seus olhos, mas…

Meu pai nunca terminou essa frase. O que ele confundira com a luz da fome era simplesmente o olhar sério do hipnotizador. Em alguns segundos, ele estava a meu serviço. Um pouco mais foi suficiente para a senhora, e os ditames de um ressentimento justo puderam ser levados a efeito.

— Meu ex-pai — falei —, presumo que o senhor já saiba que você e esta senhora não são mais o que eram?

— Observei uma certa mudança sutil — foi a resposta um tanto dúbia do velho cavalheiro. —  Talvez seja atribuível à idade.

— É mais do que isso — expliquei. — Vai do caráter. Da espécie. O senhor e a senhora aqui, na verdade, são dois cavalos xucros: ambos garanhões selvagens e hostis.

— Ora, John — exclamou minha querida mãe. — Você não quer dizer que eu sou…

— Sim, senhora — respondi solenemente, fixando meus olhos novamente nos dela. — Você é.

Mal as palavras saíram de minha boca, quando ela caiu sobre as mãos e os joelhos, e, virando de traseira para o velho e guinchando como um demônio, deu um coice violento em sua canela! Um instante depois, ele próprio estava de quatro, afastando-se dela e atirando-lhe os pés de forma simultânea e sucessiva. Com a mesma convicção, mas reduzida destreza devido à roupagem, ela também fazia o mesmo. Suas pernas voadoras se cruzavam e se misturavam da maneira mais desconcertante; seus pés, às vezes, encontravam-se no ar, seus corpos lançados para a frente, caindo no chão, indefesos por um momento. Ao se recuperarem, eles retomavam o combate, expressando seu frenesi pelos sons inomináveis das bestas furiosas que acreditavam ser. Toda a região vibrou com seu clamor! Eles rodavam em círculos, os golpes de seus pés acertando “como relâmpagos da nuvem da montanha”. Mergulhavam e empinavam sobre os joelhos, atacando ferozmente um ao outro com golpes desajeitados de ambos os punhos ao mesmo tempo, e caíam novamente sobre as mãos como se fossem incapazes de manter a posição ereta do corpo. Grama e seixos eram arrancados do solo por mãos e pés. Roupa, cabelos, rostos incrivelmente sujos de poeira e sangue. Gritos selvagens e indistintos de raiva anunciavam a aplicação dos golpes. Gemidos, grunhidos e arfadas, seu recebimento. Nada mais verdadeiramente militar fora visto em Gettysburg ou Waterloo: a valentia de meus queridos pais, na hora do perigo, nunca deixará de ser para mim uma fonte de orgulho e gratificação. No final de tudo isso, dois vestígios de mortalidade, maltratados, esfarrapados, ensanguentados e arrebentados, atestavam o fato de que o autor da contenda era órfão.

Preso por perturbação da paz, fui, e tenho sido desde então, julgado no Tribunal de Tecnicalidades e Adiamentos, onde, após quinze anos de processos, meu advogado está movendo céu e terra para levar o caso à Corte de Apelações.

Esses são alguns dos meus principais experimentos com a força ou atuação misteriosa conhecida como sugestão hipnótica. Se ela poderia ou não ser empregada por um homem mau para um propósito indigno, não sou capaz de dizer.


Traduzido por Diego Quadros


Capa da edição número 5 da antologia "Insólito! Assombroso! Inimaginável!", mostrando ilustrações mostrando cenas vintage de ficção científica.

Este conto foi originalmente publicado na edição número 5 da antologia “Insólito! Assombroso! Inimaginável!”, do selo editorial independente Ficções Pulp!, e se encontra disponível na Amazon por um preço simbólico.

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