O Exército dos Anões de Jardim

por Diego Quadros
11 minutos de leitura

Do que é feito o Inferno?

Por todo este tempo em que cá estou plantado, tenho pensado bastante a respeito de que formas um pecador pode ser punido pelas crueldades realizadas em vida.

Lembro dos sermões de Padre Antônio, durante minha mocidade nas Missões, alertando os fiéis sobre os riscos de se arder nas profundezas da terra, domínio dos mais perversos demônios e eterno destino de todas as almas condenadas à danação.

Mas será que tal abismo circundado pelas chamas, lugar de sofrimentos e dores terríveis, poderia ser assim, tão insuportável, como o inferno em que tenho vivido desde a maldita noite em que encontrei aqueles serezinhos execráveis?

As páginas que decretariam minha triste sina começaram a ser preenchidas…


… POUCO DEPOIS DA TOMADA DE PORTO ALEGRE — 1835

Fazia uns poucos dias do 20 de Setembro, data em que botamos para correr o exército imperial na Ponte da Azenha.

Nossa tropa contava com a metade do número de homens da frente inimiga, mas uma tocaia bem articulada numa extremidade da ponte e uma saraivada interminável de chumbo fizeram com que o comandante do Império batesse covardemente em retirada, abandonando seus desbaratados soldados à própria sorte.

Confesso que, para mim, foi uma vitória com o gosto azedo de derrota, pois desde a surpreendente e quase imediata fuga dos militares até nossa entrada triunfante na cidade, sob efusivas aclamações dos populares, não encontramos absolutamente nenhuma resistência.

Criado para matar (a bem da verdade, abater suínos e bovinos), é meu dever admitir que minha sede por sangue diante da possibilidade de um conflito era proeminente. Desde criança, eu já estava habituado a carnear de terneiros a vacas enormes; como especialista em armas brancas da tropa, ansiava por uma oportunidade de colocar em prática minhas habilidades com a faca em nome da revolução.

Tal oportunidade, entretanto, jamais se apresentaria à minha sanha.

Não da maneira usual.

Decepcionados e ociosos com a ausência de uma batalha tão esperada, passávamos o dia bebendo em acampamentos às margens do Guaíba, e, à noite, vagávamos pelas ruas de Porto Alegre a fim de atormentar os cidadãos em busca de alguma reação que justificasse o despejo de nossas fúrias reprimidas.

Foi nas horas mais tardias do 25 de setembro, data em que o comandante Bento Gonçalves chegara à Capital celebrado como — este sim — um verdadeiro monarca, enquanto eu me encontrava num meretrício da Rua dos 7 Pecados Mortais, que tive a primeira — e única — chance de fazer valer o fio da minha faca, embora não exatamente em nome dos ideais revolucionários.

Como é de se imaginar, em virtude da celebração pela arribada de nosso líder para assumir as rédeas do governo da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, a essa altura eu já estava completamente dominado pelos vícios de uma conduta digna dos ébrios.

Havia no meretrício uma messalina por quem eu me afeiçoara. Chamavam-na Égalité, em referência ao lema da revolução ocorrida décadas antes em sua terra natal, a França. Égalité não gostava de mim e vivia recusando minhas investidas. Dizia que eu era grosseiro nas palavras, mal-apessoado na aparência e bruto nas atitudes.

Bem, naquela noite é provável que eu tenha realmente me excedido no comportamento desviante, não só em relação a Égalité, mas a todas as pessoas do estabelecimento. Não posso dizer ao certo porque, entre o momento em que tentei beijar a messalina e minha partida do meretrício, eu guardo apenas vagos lampejos de memória, como a imagem de carregar no bolso de meu esfarrapado fardamento uma orelha decepada e o gume de minha faca lambuzado de sangue. Seria a orelha de Égalité? Não. Tenho absoluta certeza de que tinha o formato de uma orelha masculina. Agora, de quem era aquela orelha, jamais serei capaz de saber.

Tal episódio, no entanto, serviu apenas como estopim para o que realmente me conduziria ao inferno em que estou agora.

Ao deixar o prostíbulo, vaguei a esmo entre os postes de iluminação, deixando um rastro sinuoso tal qual o boitatá rastejando na mata. Estava tão enfrascado que, em vez de seguir o meu rumo até o acampamento, tomei o sentido inverso e acabei dando pelas bandas da Rua do Arvoredo.

Era uma via tenebrosa, mesmo para um valeroso aspirante a combatente como este que vos relata. Não havia lampiões para atenuar o breu de uma madrugada sem luar, e poucos eram os casebres erguidos em meio ao lamaçal.

A partir do ponto localizado aos fundos do Palácio de Barro1 , a rua era completamente ladeada por árvores que pareciam formar duas muralhas estendendo-se por trevas quase infinitas. Digo quase, porque, ainda que eu estivesse com os sentidos anuviados pela embriaguez, fui capaz de perceber um pequeno ponto luminoso ao fim da escuridão.

Mas o que diabos seria? Uma fogueira? Eu estava ciente de que não existia nenhum acampamento farroupilha naquela região isolada. E se fosse o refúgio de simpatizantes remanescentes do Império, quem sabe porque não haviam conseguido fugir com o presidente recém-deposto da Província ou porque estariam planejando algum contra-ataque para a retomada da Capital?

Impulsionado em parte pela minha gana belicosa, em parte pelo meu dever para com a revolução de investigar quaisquer sinais de ameaça, saquei minha faca ainda coberta pelo sangue da orelha e, esgueirando-me de árvore em árvore, para não correr o risco de ser atocaiado por eventuais sentinelas, avancei lentamente em direção ao ponto misterioso de luz.

Quanto tempo, não sei, mas à certa altura me ficou claro que não se tratava de nenhum bivaque de conspiradores. Era uma propriedade, uma espécie de pequena chácara, rodeada por um muro baixo, de onde se erguiam grades semelhantes a lanças, e em cujo centro repousava um enorme sobrado ao estilo colonial. Por todo o terreno, lampiões apoiados em estacas cravejadas no solo explicavam a origem da fonte de iluminação que eu avistara ao longe.

Agora despido de quase toda a apreensão, caminhei a passos mais largos em direção ao lugar. No arco acima do portão, havia uma placa identificando a propriedade como…


… O SOLAR DOS ANÕES DE JARDIM

Que raio de nome era aquele?

O portão estava entreaberto, e, a partir dele até o sobrado, um caminho de tijolos vermelhos dividia os dois lados do jardim, repletos de arbustos, pequenas árvores e flores das cores mais variadas.

Mas era o que se espalhava entre entre os arbustos, os ramos de flores e as saliências das raízes das árvores no solo que chamava a atenção: inúmeras estatuetas coloridas, talvez feitas de terracota, pintadas e moldadas como se fossem pequenos gnomos, tais quais os anões dos contos de fadas que os imigrantes alemães gostavam de contar para seus pares mais jovens em rodas noturnas.

Olhei para o casarão ao longe: não havia luzes por trás das janelas, não parecia existir vivalma em seu interior. Quem quer que fossem seus residentes, ou estariam dormindo ou talvez estivessem ausentes.
Tomado por uma curiosidade maior do que minha sanha por combate, empurrei o portão gradeado e avancei pelo caminho de tijolos vermelhos, não para verificar se a residência estava habitada naquele momento, mas para analisar aqueles duendes coloridos espalhados pela vegetação.

Primeiro, invadi a parte esquerda do jardim, a que dava para a direção sul, e tomei um dos anões na mão. Foi então que, não me perguntem a razão, não tenho resposta por isso e só posso atribuir tal gesto à embriaguez, apanhei a orelha decepada em meu bolso e levei-a até a boca da estatueta.

Naturalmente eu não poderia esperar que um objeto inanimado fosse comer aquele pedaço de um corpo humano que eu não sabia a quem pertencia, mas o fato é que aqueles anõezinhos me irritavam com seus sorrisos e expressões de felicidade, então, deixando-me levar por toda a força de minhas frustrações intensificadas pela ebriedade, joguei a orelha para um lado e, com a outra mão, arremessei o anão em minha posse contra o chão.

Gargalhei enquanto o desgraçado explodiu em milhares de pedaços. Sim, eu devia agora estar num desses estados de alucinação ou delírio provocados pelo álcool. Olhei para outro anão próximo e desferi um chute que fez sua cabeça se fragmentar no ar como se feita de areia em estado natural.

Um tanto quanto envergonhado hoje, mas não menos arrependido, confesso que tomei gosto por tal violência. Céus, como me senti bem em descontar toda a minha agressividade reprimida naquelas criaturas malditas!

Em pouco tempo, eu já me encontrava dominado pela completa selvageria. Decidi testar a resistência de minha faca naqueles pequeninos, e atravessei a lâmina em seus corpinhos uma, duas, três, incontáveis vezes, até vê-los repartidos, esquartejados, estraçalhados pelo gramado.

Em dado momento, jão não havia mais anão inteiro na parte esquerda do jardim. Mas a raiva ainda queimava dentro de mim, então me virei para o lado direito do caminho de tijolos vermelhos, e tamanha foi a surpresa ao perceber que as dezenas de estátuas coloridas da outra parte haviam simplesmente desaparecido.

Covardes! Malditos!

Guardei minha faca no estojo à cintura e, forçado a me dar por satisfeito, virei-me em direção ao portão a fim de abondonar aquele jardim insuportavelmente feliz. E então se abateu sobre mim esta desgraça em que cá estou até os dias de hoje.

Dezenas de anões bloqueavam o caminho de tijolos vermelhos entre o ponto em que eu estava e a saída da propriedade. E eram anões diferentes dos anteriores. Esses recém-chegados eram pintados e moldados como se fossem pequenos soldados do exército imperial. Ademais, percebi que o portão encontrava-se fechado.

Mas o que era tudo aquilo afinal? De onde viera aquela minúscula tropa inimiga? E quem havia selado o portão? Naturalmente que não fora aquela hordinha de recrutas do Império. Eram apenas objetos inanimados, eu sabia disso, apesar de tratá-los como vítimas reais de meu sadismo assassino momentos antes.

Corri em direção aos anões do exército e estendi a perna para acertar um pontapé no anãozinho que estava mais à frente, simbolizando o comandante da tropa. E então meus pulmões deixaram escapar um grito terrível que talvez pudesse ser ouvido por todo o silêncio noturno da capital da Província.

Eu não percebera que o anão-comandante portava nas mãos uma faca em riste, e, na hora em que o chute foi aplicado, a arma foi cravejada em meu pé bem por entre os artelhos. Desabei sobre o caminho de tijolos vermelhos, contorcendo-me em lancinante, intolerável dor.

Esbocei um movimento para me reerguer, e então vi que a pequena tropa de soldados, agora, já se encontrava ao redor de mim. Todos eles! Todos aqueles soldadinhos do Império, com seus sorrisinhos de escárnio diante de um inimigo combalido e praticamente derrotado.

Puxei minha faca e tentei acertar os mais próximos, mas, contra esses, minha lâmina não surtia efeito algum. Pareciam mais duros que os anõezinhos coloridos de antes. Seja qual fosse o material de que eram fabricados, certamente era muito mais resistente do que terracota.

Depois de diversas estocadas fracassadas de minha parte, as quais deixaram minha faca inutilizável como arma, vi-me inteiramente indefeso, à mercê da tropa inimiga.

Não havia mais salvação para mim. Ergui as mãos em sinal de rendição.

E senti a primeira estocada na barriga. E depois outra na perna. E mais outra nas costas. E outra no peito. Era agora a vez dos soldados anões desferirem contra meu corpo os golpes de suas facas e lanças e outras armas pontiagudas.

Por quanto tempo sofri, quem é capaz de dizer? Para mim, aquele flagelo durou por quase toda uma eternidade, interrompida apenas pelas trevas da inconsciência após meu corpo não tolerar mais a dor de tantas estocadas.

E eu desejaria ter morrido durante o ataque, mas infelizmente não foi o que aconteceu.


PORTO ALEGRE, SOLAR DOS ANÕES DE JARDIM – MUITO TEMPO DEPOIS

Em algum momento, perdi as contas do período em que cá estou, escondido num canto quase inacessível do jardim, com a vista para nada mais do que alguns arbustos e meia dúzia de outros anões terrivelmente sorridentes, que parecem ignorar minha presença sombria.

Podem ter se passado anos, podem ter se passado décadas.

Não durmo desde que, por algum feitiço maligno, despertei neste estado de absoluta imobilidade, e chega um momento em que noite e dia se fundem numa coisa só e perdemos completamente a noção do tempo.

De vez em quando chove e, através do reflexo de pequenas poças que se formam em volta de mim, é possível me ver neste molde imutável: roupinhas esfarrapadas, faca na cintura, o corpinho dominado por talhos vermelho-sangue e a ausência de uma das minhas orelhas.

E como dói.

Não apenas o corpo, condenado a sofrer fisicamente pela eternidade com os ferimentos dos cortes; dói muito mais o espírito, por sequer poder alimentar a esperança de que o destino vá me reservar algo melhor.

Viver como um anão de jardim, acreditem, é o pior dos infernos.


  1. Edificação que serviu de sede do governo do Rio Grande do Sul entre 1789 e 1896. Foi derrubado para a posterior construção do atual Palácio Piratini. ↩︎

Confira uma análise detalhada desta história em forma de podcast feita pela IA:

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