Meu Ano Novo Entre as Múmias, de Grant Allen

por Diego Quadros
28 minutos de leitura

Sou um errante e vagabundo na face da terra há muitos anos, e certamente tive algumas aventuras estranhas durante esse tempo; mas posso assegurar-lhes que nunca passei por vinte e quatro horas mais estranhas do que aquelas na grande pirâmide selada de Abu Yilla há cerca de doze meses.

A maneira como cheguei lá por si só era bem estranha. Eu viera ao Egito para uma excursão de inverno com os Fitz-Simkins, de cuja filha Editha eu estava noivo naquele preciso momento. Vocês provavelmente se lembrarão de que o velho Fitz-Simkins pertencia originalmente à rica firma  Simkinson e Stokoe, reverentes vinicultores; e quando o sócio sênior se aposentou do negócio e obteve seu título de cavaleiro, o College of Heralds[1] oportunamente descobriu que seus ancestrais haviam trocado seu belo e antigo nome normando por seu equivalente inglês em algum momento do reinado do rei Ricardo I; e eles imediatamente autorizaram o velho cavalheiro a retomar o patronímico e os portes heráldicos de seus ilustres antepassados. É realmente surpreendente a frequência com que essas curiosas coincidências surgem no College of Heralds.

Certamente era uma ótima oportunidade para um advogado sem posses e sem licença como eu — dependente de uma pequena fortuna em títulos sul-americanos, e meus precários ganhos como escritor de humor burlesco — garantir uma propriedade tão valiosa quanto Editha Fitz-Simkins. Em realidade, a moça era inegavelmente fútil; mas conheci moças mais fúteis do que ela, a quem quarenta mil libras converteram em nobres damas: e se Editha não houvesse realmente se apaixonado por mim, suponho que o velho Fitz-Simkins jamais teria consentido em tal união.  No entanto, flertáramos tão abertamente e tão desesperadamente durante a temporada de Scarborough, que teria sido difícil para Sir Peter rompê-la: e assim eu cheguei ao Egito em uma viagem para garantir o prêmio do meu seguro, seguindo o rastro de minha futura sogra, cujos pulmões exigiam um clima amistoso, embora na minha opinião eles fossem realmente um par de apêndices pulmonares dignos de crédito quando sorviam o ar.

Porém, o curso do amor verdadeiro não correu tão suavemente como se poderia esperar. Editha me achava menos entusiasmado do que um devotado escudeiro deveria ser; e na última noite do ano  arranjou uma discussão de casal regulamentar, porque eu escapara sorrateiramente do barco naquela tarde, sob a orientação de nosso dragomano[2], para testemunhar as apresentações sedutoras de alguma bela Ghaw zi, dançarinas de uma cidade vizinha. Como ela descobriu só Deus sabe, pois eu dera ao patife Dimitri cinco piastras[3] para refrear a língua: mas ela descobriu de qualquer forma, e decidiu considerar isso uma ofensa de primeira magnitude — um pecado mortal para ser expiado durante três dias de penitência e humilhação.

Fui para a cama naquela noite, em minha rede no convés, com sentimentos nada satisfatórios. Estávamos atracados na margem de Abu Yilla, o buraco mais pestilento entre as cataratas e o Delta. Os mosquitos eram piores do que os mosquitos comuns do Egito, e isso significa muito. O calor era opressivo mesmo à noite, e a malária dos canteiros de lótus subia como uma névoa palpável diante dos meus olhos. Acima de tudo, eu estava ficando em dúvida se Editha Fitz-Simkins não poderia, afinal, escorregar entre meus dedos. Sentia-me miserável e febril: e ainda assim tinha deliciosas lembranças interlusórias, no meio disso tudo, daquela adorável e pequena Gh ziyah, que dançava aquela dança requintada, maravilhosa, fascinante, deliciosa e terrivelmente oriental a qual eu assistira à tarde.

Por Júpiter, ela era uma bela criatura. Olhos como duas luas cheias; cabelo como o Penseroso de Milton; movimentos como um poema de Swinburne posto em ação. Se Editha fosse apenas uma imagem diluída daquela moça! Palavra de honra, eu estava me apaixonando por uma Gh ziyah!

Então os mosquitos voltaram. Bzzz — bzzz — bzzz. Dou o bote no maior e mais ruidoso, uma espécie de prima donna em sua ópera infernal. Eu mato a prima donna, porém mais dez artistas estridentes surgem em seu lugar. Os sapos coaxam terrivelmente nas águas juncosas e rasas. A noite fica cada vez mais quente. Enfim, não aguento mais. Levanto-me, visto-me levemente e pulo em terra para encontrar uma maneira de passar o tempo.

Mais adiante, do outro lado da enseada, está a grande e selada Pirâmide de Abu Yilla. Amanhã subiremos até o topo, mas darei uma volta de reconhecimento nessa direção agora. Ando pelos campos enluarados, minha alma ainda dividida entre Editha e Gh ziyah, e aproximo-me da massa solene de enormes e antiquados blocos de granito que se projetam tão soturnamente contra o horizonte pálido. Sinto-me meio acordado, meio adormecido e totalmente febril: mas vasculho a base de um jeito meio a esmo, com a vaga ideia de que talvez possa descobrir por acaso o segredo de sua entrada selada, que antes confundiu tantos exploradores pertinazes e egiptólogos instruídos.

Enquanto caminho pela base, lembro-me da história do velho Heródoto, tal qual uma página de “As mil e uma noites”, de como o rei Rhampsinitus construiu para si um tesouro, onde uma pedra girava sobre um pivô feito uma porta; e de como o construtor valeu-se desse seu ardiloso artifício para roubar ouro do depósito do rei. Suponha que a entrada para a Pirâmide selada fosse por tal porta. Seria curioso se eu tivesse a chance de encontrar o local exato.

Eu estava ao luar, perto do ângulo nordeste do grande aglomerado, na décima segunda pedra do canto. Uma fantasia aleatória ocorreu-me, de que eu poderia girar esta pedra empurrando-a para dentro pelo lado esquerdo. Apoiei-me nela com todo o meu peso e tentei movê-la sobre o pivô imaginário. Ele cedeu uma fração de polegada? Não, deve ter sido mera fantasia. Deixe-me tentar de novo. Com certeza está cedendo! Gracioso Osíris, ele se moveu uma polegada ou mais! Meu coração bate rápido, com febre ou excitação, e tento uma terceira vez. A ferrugem de séculos no pivô se desgasta lentamente, e a pedra gira vagarosamente, dando acesso a uma passagem baixa e escura.

Deve ter sido a loucura que me levou a entrar no corredor esquecido, sozinho, sem tocha nem fósforo, àquela hora da noite; mas de qualquer forma eu entrei. A passagem era alta o suficiente para um homem andar ereto, e eu podia sentir, enquanto tateava lentamente, que a parede era composta de granito liso e polido, enquanto o chão se inclinava para baixo com uma descida tênue, mas regular. Caminhei com o coração trêmulo e os pés vacilantes por cerca de quarenta ou cinquenta jardas pelo misterioso vestíbulo: e então senti-me bruscamente interrompido por um bloco de pedra colocado bem no meio do caminho. Já tinha quase o suficiente para uma noite e estava me preparando para voltar ao barco, empolgado com a nova descoberta, quando minha atenção foi subitamente atraída por um fato incrível, perfeitamente milagroso.

O bloco de pedra que barrava a passagem era fracamente visível como um quadrado, por meio de um cinturão de luz que escapava das frestas. Devia haver uma lâmpada ou outra chama acesa lá dentro. E se esta fosse uma porta como a outra, levando a uma câmara talvez habitada por algum perigoso bando de párias? A luz era uma evidência segura de ocupação humana: e, no entanto, a porta externa balançava enferrujada em seu pivô como se nunca houvesse sido aberta por séculos. Parei um momento com medo antes de aventurar-me a testar a pedra: e então, impelido mais uma vez por algum impulso insano, virei o bloco maciço com todas as minhas forças para a esquerda. Ele cedeu lentamente como o bloco vizinho, e finalmente se abriu ao saguão central.

Nunca, enquanto viver, esquecerei o êxtase de terror, espanto e desamparo absoluto que se apoderou de mim quando entrei naquela câmara aparentemente encantada. Um clarão de luz irrompeu primeiro em meus olhos, de jatos de gás dispostos em fileiras regulares, camada por camada, sobre as colunas e paredes do vasto prédio. Enormes pilares, ricamente pintados com decorações vermelhas, amarelas, azuis e verdes, estendiam-se em sucessão interminável pelos corredores deslumbrantes. Um piso de sienito polido refletia o esplendor das lâmpadas, e servia de base para esfinges de granito vermelho e imagens roxo-escuras em pórfiro da deusa com cara de gato Pasht, cuja forma eu conhecia tão bem do Louvre e do Museu Britânico. Mas eu não tinha olhos para nenhuma dessas maravilhas menores, estando totalmente absorto na maior maravilha de todas: pois ali, em estado real e com cabeça mitrada, um rei egípcio vivo, cercado por sua corte de penteados peculiares, banqueteava-se em carne sobre um trono real, diante de uma mesa repleta de iguarias menfianas!

Fiquei paralisado de admiração e espanto, minha língua e meus pés esqueciam seu ofício, e minha mente rodopiava, como lembro que costumava girar quando minha saúde se deteriorou completamente em Cambridge após o Classical Tripos[4]. Olhei fixamente para a estranha imagem diante de mim, absorvendo todos os seus detalhes de uma maneira confusa, mas incapaz de entender ou perceber qualquer parcela de seu verdadeiro significado. Vi o rei no centro do salão, erguido em um trono de granito incrustado de ouro e marfim; sua cabeça coroada com o gorro pontudo de Ramsés, e seu cabelo encaracolado caindo pelos ombros em um frisado definido e formal. Vi sacerdotes e guerreiros de ambos os lados, vestidos com os trajes que muitas vezes havia observado cuidadosamente em nossas grandes coleções; enquanto moças de pele bronzeada, com roupas leves em volta da cintura e membros exibidos em gracioso pitoresco, serviam-nos, seminuas, como nas pinturas de parede que havíamos examinado recentemente em Karnak e Siena. Eu vi as nobres damas, vestidas da cabeça aos pés com roupas de linho tingido, sentadas ao fundo, banqueteando-se sozinhas em uma mesa separada; enquanto dançarinas, como representantes mais antigas das minhas amigas da noite anterior, as Ghaw zi, rolavam diante de todos em poses estranhas, ao som de harpas de quatro cordas e flautas. Em suma, vi como em um sonho todo o drama da vida real egípcia cotidiana, desenrolando-se novamente sob meus olhos, em suas propriedades e personagens reais e originais.

Aos poucos, enquanto olhava, percebi que meus anfitriões não estavam menos surpresos com a aparência de seu hóspede anacrônico do que o próprio hóspede com o estranho panorama vivo que encontrava seus olhos. Em um momento a música e a dança cessaram; o banquete parou em seu curso, e o rei e seus nobres levantaram-se com indisfarçável espanto para observar o estranho intruso.

Alguns minutos passaram antes que alguém avançasse de qualquer lado. Por fim, uma jovem de aparência real, mas estranhamente parecida com a Gh ziyah de Abu Yilla, e lembrando em parte a moça risonha em primeiro plano da grande tela do Sr. Long na antiga Academia, surgiu da multidão.

— Posso perguntar-lhe — disse ela em egípcio antigo, — quem é você e por que veio aqui para nos perturbar?

Eu nunca havia percebido que falava ou entendia a língua dos hieróglifos, mas descobri que não tive a menor dificuldade em compreender ou responder sua pergunta. Para dizer a verdade, o egípcio antigo, embora seja uma língua extremamente difícil de decifrar em sua forma escrita, torna-se tão fácil como fazer amor quando falado por um par de lábios como os da princesa faraônica. É realmente muito parecido com o inglês, pronunciado em um sussurro rápido e um tanto indefinido, e com todas as vogais omitidas.

— Peço dez mil desculpas por minha intrusão — respondi, em tom arrependido, — mas eu não sabia que esta Pirâmide era habitada, ou não deveria ter entrado em sua residência de maneira tão rude. Quanto aos pontos que deseja saber, sou um turista inglês e você encontrará meu nome neste cartão — falei, com polidez conciliatória, entregando-lhe um cartão retirado de um estojo que felizmente guardara no bolso. A princesa examinou-o atentamente, mas evidentemente não entendeu seu significado.

— Em troca — continuei, — posso perguntar-lhe em que augusta presença encontro-me agora por virtude do acaso?

Um oficial da corte se levantou da multidão e respondeu em tom heráldico:

— Na presença do ilustre monarca, Irmão do Sol, Tutemés XXVII, rei da XVIII Dinastia.

— Saudai o Senhor do Mundo — complementou outro oficial na mesma ladainha.

Curvei-me para Sua Majestade e dirigi-me ao saguão. Aparentemente, minha reverência não estava à altura dos padrões egípcios de cortesia, pois um risinho abafado irrompeu audivelmente das fileiras de mulheres de pele bronzeada que serviam aos sacerdotes. Mas o rei sorriu graciosamente à minha tentativa e, voltando-se para o nobre mais próximo, observou com uma voz de grande doçura e majestade contida:

— Este estranho, Ombos, é certamente uma pessoa muito curiosa. Sua aparência não se parece com a de um etíope ou outro selvagem, nem ele se parece com os marinheiros de rosto pálido que vêm até nós da terra aqueia além-mar. Suas feições, com certeza, não são muito diferentes das deles; mas sua vestimenta extraordinária e singularmente inartística mostra que pertence a alguma outra raça bárbara.

Olhei para meu colete e vi que estava usando meu terno xadrez de turista, cinza e cor de lama, que um alfaiate da Bond Street havia me fornecido pouco antes de deixar a cidade, como a última moda em tweeds[5] sofisticados. Evidentemente esses egípcios deviam ter um padrão de gosto muito curioso para não admirar nosso estilo bonito e elegante de vestuário masculino.

— Se a poeira sob os pés de Vossa Majestade puder se aventurar em uma sugestão — disse o oficial a quem o rei se dirigira, — eu insinuaria que este rapaz é provavelmente um visitante perdido das terras totalmente incivilizadas do Norte. O capacete que carrega na mão obviamente revela um habitat ártico.

Eu havia tirado instintivamente meu chapéu redondo de feltro no primeiro momento de surpresa, quando encontrei-me no meio dessa estranha multidão, e estava agora em uma postura um pouco embaraçosa, segurando-o desajeitadamente diante de mim como um escudo para proteger o peito.

— Que o estranho se cubra — disse o rei.

— Intruso bárbaro, cubra-se — gritou o arauto. Percebi que o rei nunca se dirigia diretamente a ninguém, exceto aos altos funcionários ao seu redor.

Coloquei meu chapéu como desejado. 

— A tiara de forma mais tola e desoconfortável, de fato — disse o grande Tutemés.

— Muito diferente de sua mitra nobre e imponente, Leão do Egito — respondeu Ombos.

— Pergunte ao estranho o nome dele — continuou o rei.

Era inútil oferecer outro cartão, então eu mencionei-o em voz clara.

— Uma designação grosseira e quase impronunciável em verdade — comentou Sua Majestade para o Camareiro-Mor ao lado dele. — Esses selvagens falam línguas estranhas, muito diferentes da língua fluente de Mêmnon e Sesóstris.

O camareiro fez uma reverência com três genuflexões. Comecei a sentir-me um pouco humilhado com esses comentários pessoais, e quase acho (embora não desejasse que isso fosse mencionado no Templo) que um rubor subiu ao meu rosto.

A linda princesa, que estivera parada perto de mim nesse meio tempo com uma postura de repouso escultural, agora parecia ansiosa por mudar o rumo da conversa.

— Querido pai — disse ela com uma inclinação respeitosa, — certamente o estranho, por mais bárbaro que seja, não pode saborear alusões tão incisivas à sua pessoa e a seus trajes. Devemos deixá-lo sentir a graça e a delicadeza do refinamento egípcio. Então talvez possa levar consigo algum eco tênue de nossa beleza culta para as selvas do norte.

— Bobagem, Hatasou — respondeu Tutmés XXVII com impaciência. — Os selvagens não têm sentimentos e são tão incapazes de apreciar a sensibilidade egípcia como o corvo crocitante é incapaz de alcançar a digna reserva do crocodilo sagrado.

— Vossa Majestade está enganado — eu disse, recuperando meu autocontrole gradualmente e percebendo minha posição como um inglês nascido livre perante a corte de um déspota estrangeiro, embora deva admitir que senti-me um pouco menos confiante do que de costume, devido ao fato de não estarmos representados na Pirâmide por um cônsul britânico. — Sou um turista inglês, um visitante de uma terra moderna cuja civilização supera em muito a cultura rude do antigo Egito; e estou acostumado ao tratamento respeitoso de todas as outras nacionalidades, como sucede a qualquer cidadão da Primeira Potência Naval do Mundo.

Minha resposta causou uma impressão profunda.

— Ele falou com o Irmão do Sol — gritou Ombos em evidente perturbação. — Ele deve ser do Sangue Real em sua própria tribo, ou nunca ousaria fazê-lo!

— Caso contrário — acrescentou uma pessoa cuja vestimenta reconheci como a de um sacerdote, — deve ser oferecido em expiação a Amon-Ra imediatamente.”

Via de regra, sou uma pessoa honesta e decente, mas nessas circunstâncias alarmantes aventurei-me a contar uma pequena lorota com um ar de petulância despreocupada.

— Sou um irmão mais novo do nosso rei atual — eu disse sem um momento de hesitação; pois não havia ninguém presente para me contradizer, e tentei acalmar minha consciência refletindo que de qualquer forma eu estava apenas alegando consanguinidade com um personagem imaginário.

— Nesse caso — disse o rei Tutmés, com mais cordialidade em seu tom, — não pode haver impropriedade em dirigir-me a você pessoalmente. Gostaria de sentar-se ao meu lado à mesa, para que conversemos sem interromper um banquete que precisa ser breve o suficiente em qualquer circunstância? Hatasou, minha querida, você pode sentar-se ao lado do príncipe bárbaro.

Senti uma clara expansão às dimensões dignas de uma Alteza Real quando sentei-me à direita do rei. Os nobres retomaram seus lugares, as criadas de pele bronzeada ficaram prostradas como soldados enfileirados, conteplando minha humilde pessoa, as taças circularam novamente, e uma graciosa jovem logo me trouxe carne, pão, frutas e vinho de tâmaras.

Durante todo esse tempo eu fiquei naturalmente ardendo de curiosidade para indagar quem poderia ser meu estranho anfitrião, e como eles haviam preservado sua existência por tantos séculos neste salão desconhecido; mas fui obrigado a esperar até que satisfizesse Sua Majestade a respeito de minha nacionalidade, os meios pelos quais eu entrara na Pirâmide, o estado geral das coisas em todo o mundo no momento presente e cinquenta mil outros assuntos de natureza semelhante. Tutmés recusava-se veementemente a acreditar em minha reiterada afirmação de que nossa civilização era muito superior à egípcia: “Porque”, disse ele, “vejo pelo seu traje que sua nação é totalmente desprovida de gosto ou inventividade.” Mas ele escutou com grande interesse meu relato sobre a sociedade moderna, a máquina a vapor, a Lei Proibitiva de Permissão[6], o telégrafo, a Câmara dos Comuns, o Autogoverno[7] e outras bênçãos de nossa era avançada, bem como um breve resumo sobre a história europeia, da ascensão da cultura grega à Guerra Russo-Turca. Por fim, suas perguntas estavam quase esgotadas, e tive a chance de fazer algumas contra-investigações de minha parte.

— E agora — eu disse, virando-me para a encantadora Hatasou, a quem eu achava uma informante mais agradável do que seu augusto papai, — eu gostaria de saber quem são vocês.

— O quê? Você não sabe? — gritou com surpresa espontânea. — Ora, somos múmias.

Ela fez essa declaração surpreendente com a mesma inconsciência sóbria de quem diz “somos franceses” ou “somos americanos”. Olhei ao redor das paredes e observei atrás das colunas, o que eu não havia notado até então — um grande número de sárcofagos vazios, com as tampas colocadas de qualquer jeito nas laterais.

— Mas o que vocês estão fazendo aqui? — perguntei, um tanto desorientado.

— É possível — disse Hatasou — que você realmente não conheça o objetivo do embalsamamento? Embora suas maneiras mostrem que você é um jovem agradável e bem-educado, deve desculpar-me por dizer que é escandalosamente ignorante. Somos transformados em múmias para preservar nossa imortalidade. Uma vez a cada mil anos, acordamos por vinte e quatro horas, recuperamos nossa carne e sangue, e nos banqueteamos mais uma vez com as louças e outros objetos úteis depositados para nós na Pirâmide. Hoje é o primeiro dia de um milênio, e assim acordamos pela sexta vez desde que fomos embalsamados.

— A sexta vez? — perguntei, incrédulo. — Então vocês devem estar mortos há seis mil anos.

— Exatamente.

— Mas o mundo ainda não existe há tanto tempo — gritei, em um fervor de terror ortodoxo.

— Com licença, príncipe bárbaro. Este é o primeiro dia do tricentésimo vigésimo sétimo milênio.

Minha ortodoxia recebeu um choque severo. No entanto, eu estava acostumado a cálculos geológicos e um tanto inclinado a aceitar a antiguidade do homem; então engoli a declaração sem mais delongas. Além disso, se uma garota tão encantadora como Hatasou pedisse-me naquele momento para tornar-me maometano, ou para adorar ostras, acredito que faria isso na hora.

— Você acorda apenas por um único dia e uma única noite, então? — eu disse.

— Apenas por um único dia e uma única noite. Depois disso, vamos dormir por mais um milênio.

“A menos que sejam, nesse meio tempo, queimados como combustível na Ferrovia do Cairo”, acrescentei mentalmente. — Mas como — continuei em voz alta — vocês conseguem essas luzes?

— A Pirâmide é construída sobre uma fonte de gás inflamável. Temos um reservatório em uma das câmaras laterais em que ele se acumula durante os mil anos. Assim que acordamos, abrimos imediatamente a bica e o acendemos com um fósforo-lúcifer[8].

— Palavra de honra — interrompi, — não fazia ideia de que vocês, antigos egípcios, estavam familiarizados com o uso de fósforos.

— Muito provavelmente não. ‘Há mais coisas no céu e na terra, Cefrenes, do que é sonhado em sua filosofia’, como o bardo de Filas declara.

Outras perguntas trouxeram à tona todos os segredos daquelo estranho jazigo e mantiveram-me completamente interessado até o final do banquete. Então o sumo sacerdote levantou-se solenemente, ofereceu um pequeno pedaço de carne a um crocodilo deificado, que repousava de forma meditativa ao lado de seu sarcófago vazio, e declarou o encerramento da festa naquela noite. Todos se levantaram de seus lugares, vagaram pelos extensos corredores ou passagens laterais e formaram pequenos grupos de conversa sob os brilhantes lampiões a gás.

De minha parte, caminhei com Hatasou pela menos iluminada das colunatas e sentei-me ao lado de uma fonte de mármore, onde vários peixes (deuses de grande santidade, Hatasou assegurou)  divertiam-se em uma bacia de pórfiro. Não sei dizer quanto tempo ficamos ali sentados, mas sei que conversamos bastante sobre peixes, deuses, hábitos e costumes egípcios, filosofia egípcia e, acima de tudo, a forma egípcia de se fazer amor. Achamos muito interessante o último assunto mencionado e, uma vez iniciada, não ocorreu nenhuma distração posterior para quebrar o tom equilibrado da conversa. Hatasou era uma figura adorável, alta, majestosa, com braços escuros e lisos, e pescoço de bronze polido: seus grandes olhos negros eram cheios de ternura, e seus longos cabelos estavam presos em um brilhante toucado egípcio, que harmonizava em tom com sua compleição e seu manto. Quanto mais conversávamos, mais desesperadamente eu me apaixonava, e mais alheio ficava ao meu compromisso para com Editha Fitz-Simkins. A mera filha feia de um rico e vulgar cavaleiro recém-nomeado, certamente para se exibir diante de mim, quando aqui estava uma princesa do sangue real do Egito, obviamente sensível às atenções que prestava a ela, e que não relutava em recebê-los com uma graça tímida e modesta.

Bem, eu continuei dizendo coisas bonitas para Hatasou, e Hatasou continuou menosprezando-as de uma maneira bonita, como quem diz: “Eu não quero dizer o que finjo querer dizer nem um pouco”, até que finalmente eu admitisse que estávamos evidentemente tão afastados nessa doença do coração chamada amor quanto é possível para dois jovens que se encontram pela primeira vez. Portanto, quando Hatasou puxou seu relógio — outro mecanismo pelo qual os antiquários nunca davam crédito ao povo egípcio — e declarou que tinha apenas mais três horas de vida, pelo menos durante os próximos mil anos, desmoronei por completo, peguei meu lenço e comecei a soluçar feito uma criança de cinco anos.

Hatasou ficou profundamente comovida. O decoro proibia que ela me consolasse com demasiado zelo; mas ela se aventurou a retirar o lenço delicadamente do meu rosto e sugeriu que ainda havia um caminho pelo qual poderíamos desfrutar um pouco mais da companhia um do outro.

— Suponha — ela disse calmamente, — que você se tornasse uma múmia. Assim, despertaria, como nós, a cada mil anos; e depois de ter experimentado uma vez, você achará tão natural dormir por um milênio como por oito horas. É claro — ela acrescentou com um leve rubor, — durante os próximos três ou quatro ciclos solares haveria muito tempo para concluir quaisquer outros assuntos que você possivelmente precisaria contemplar, antes da ocorrência de outra era glacial.

Esse modo de ver o tempo era certamente novo e um tanto confuso para pessoas que normalmente calculam seus intervalos por semanas e meses; e eu tinha uma vaga consciência de que minhas relações com Editha impunham-me uma necessidade moral de retornar ao mundo exterior, em vez de tornar-me uma múmia milenar. Além disso, havia a perturbadora chance de ser convertido em combustível e dissipado no espaço antes da chegada do próximo dia de vigília. Mas olhei para Hatasou, cujos olhos estavam se enchendo de lágrimas de simpatia, e aquele olhar me decidiu. Atirei Editha, a vida e o dever aos cães, e resolvi ser múmia.

Não havia tempo a perder. Restavam-nos apenas três horas, e o processo de embalsamamento, mesmo da maneira mais apressada, levaria duas horas. Corremos para o sumo sacerdote, que estava encarregado do departamento específico em questão. Ele imediatamente atendeu aos meus desejos e explicou brevemente o modo como geralmente tratavam o cadáver.

Essa palavra despertou-me repentinamente.

— O cadáver! — gritei. — Mas eu estou vivo. Vocês não podem me embalsamar vivo.

— Podemos — respondeu o sacerdote, —com clorofórmio.

—Clorofórmio! — repeti, cada vez mais surpreso. — Eu não tinha ideia de que vocês egípcios sabiam alguma coisa sobre isso.

— Bárbaro ignorante! — ele respondeu, com o lábio curvado. — Você se imagina muito mais sábio do que os professores do mundo. Se fosse versado em todo o conhecimento dos egípcios, saberia que o clorofórmio é um dos nossos anestésicos mais simples e comuns.

Coloquei-me imediatamente nas mãos do sacerdote. Ele tirou o clorofórmio e aplicou-o sob minhas narinas, enquanto eu estava deitado em um sofá macio sob o pátio central. Hatasou segurava minha mão na dela e observava minha respiração com um olhar ansioso. Vi o sacerdote inclinado sobre mim, com um frasco embaçado na mão, e tive uma vaga sensação de cheiro de mirra e nardo. Em seguida, perdi a consciência por alguns momentos, e quando recuperei novamente os sentidos em um intervalo temporário, o sacerdote segurava uma pequena faca de nefrita, manchada de sangue, e senti que um corte havia sido feito em meu peito. Então, aplicaram o clorofórmio mais uma vez; Senti Hatasou dar um aperto suave em minha mão; todo o panorama desapareceu finalmente da minha vista; e fui dormir por um tempo aparentemente interminável.

Quando despertei novamente, minha primeira impressão levou-me a acreditar que os mil anos haviam passado e que eu retornara à vida mais uma vez para festejar com Hatasou e Tutmés na Pirâmide de Abu Yilla. Mas uma segunda reflexão, combinada com uma observação mais atenta dos arredores, convenceu-me de que eu estava realmente deitado em um quarto do Shepheard’s Hotel, no Cairo. Uma enfermeira do hospital inclinou-se sobre mim, em vez de um sumo sacerdote; e não notei sinal algum da presença de Editha Fitz-Simkins. Mas quando tentei fazer perguntas sobre meu paradeiro, fui peremptoriamente informado de que não deveria falar, pois estava recuperando-me de uma febre severa e poderia pôr em perigo minha vida ao conversar.

Algumas semanas depois, soube da continuação de minha aventura noturna. Os Fitz-Simkins, sentindo minha falta no barco pela manhã, a princípio imaginaram que eu poderia ter desembarcado para um passeio mais cedo. Mas depois que a hora do café da manhã, do almoço e do jantar passaram, eles começaram a ficar alarmados e mandaram procurar-me em todas as direções. Um dos seus batedores, ao passar pela Pirâmide, notou que uma das pedras perto do ângulo nordeste havia sido deslocada, de modo a dar acesso a uma passagem escura, até então desconhecida. Chamando vários de seus amigos, pois tinha medo de aventurar-se sozinho, ele passou pelo corredor e por um segundo portão para o saguão central. Lá o fellahin encontrou-me, deitado no chão, sangrando profusamente de um ferimento no peito, e em estágio avançado de febre malárica. Eles trouxeram-me de volta ao barco, e os Fitz-Simkins transportaram-me imediatamente ao Cairo, para atendimento médico e cuidados adequados.

A princípio Editha estava convencida de que eu tentara cometer suicídio porque não podia suportar ter causado sua dor, e, portanto, resolveu cuidar de mim com o maior zelo durante a doença. Mas ela descobriu que meus comentários delirantes, além de se referirem frequentemente a uma princesa, com quem eu parecia ter tido uma relação inesperadamente íntima, também se relacionavam em grande parte ao nosso próprio casus belli[9], as dançarinas de Abu Yilla. Mesmo essa provação ela poderia ter suportado, estabelecendo a degeneração moral que levara-me a comparecer a uma exibição tão degradante como um primeiro sintoma de minha doença, mas certas observações infelizes, contendo alusões incisivas e de modo algum lisonjeiras à sua aparência pessoal? que eu contrastava, para sua desvantagem, com a da princesa desconhecida? essas, eu digo, eram coisas que ela não podia perdoar; e ela partiu abruptamente do Cairo com seus pais para a Riviera, deixando para trás um bilhete pungente, no qual denunciava minha perfídia e meu coração vazio com todas as flores da eloquência feminina. Daquele dia para cá nunca mais a vi.

Quando voltei a Londres e propus apresentar este relato à Sociedade dos Antiquários, todos os meus amigos dissuadiram-me com base em sua aparente incredibilidade. Eles declaram que devo ter ido à Pirâmide já em estado de delírio, descoberto a entrada por acaso e caído exausto quando cheguei à câmara interna. Em resposta, gostaria de apontar três fatos. Em primeiro lugar, sem dúvida, encontrei o caminho para a passagem desconhecida — por cujo feito recebi depois a medalha de ouro da Société Khediviale, e da qual guardo uma clara lembrança, não diferindo em nada de minha lembrança dos eventos subsequentes. Em segundo lugar, eu tinha em meu bolso, quando fui encontrado, um anel de Hatasou, que havia tirado de seu dedo pouco antes de me aplicarem o clorofórmio e guardado no bolso como lembrança. E em terceiro lugar, eu tinha no peito a ferida que vi o sacerdote infligir com uma faca de nefrita, e a cicatriz pode ser vista no local até os dias atuais. A hipótese absurda de meus amigos médicos, de que fui ferido ao cair contra uma ponta afiada de rocha, devo rejeitar imediatamente como indigna de um momento de consideração.

Minha própria teoria é que ou o sacerdote não teve tempo de completar a operação, ou então que a chegada dos batedores dos Fitz-Simkins espantou as múmias de volta aos seus sarcófagos mais ou menos uma hora antes do necessário. De qualquer forma, lá estavam todas elas, espalhadas pelas paredes imperturbáveis, no momento em que o fellahin entrou.

Infelizmente, a verdade do meu relato não poderá ser testada por mil anos. Mas como uma cópia deste livro será preservada para o benefício da posteridade no Museu Britânico, peço solenemente à Humanidade Coletiva que teste a veracidade desta história, enviando uma delegação de arqueólogos à Pirâmide de Abu Yilla, no último dia do mês de dezembro de dois mil oitocentos e setenta e sete. Se eles não encontrarem Tutmés e Hatasou festejando no salão central exatamente como descrevi, admitirei de bom grado que a história do meu Ano Novo entre as Múmias é uma alucinação vã, indigna de crédito nas mãos do mundo científico.


[1]     Entidade fundada em 1484 pelo rei Ricardo III, em Londres. É uma das poucas autoridades reguladoras da heráldica remanescentes na Europa.

[2]     Guia turístico no Oriente Médio.

[3]     Nome adotado para unidade monetária fracionária por alguns países que têm a libra como moeda.

[4]     Curso de filologia clássica ministrado pela Faculdade de Clássicos da Universidade de Cambridge. Consiste nas disciplinas: línguas (grego e latim); história antiga; literatura, arte, arqueologia e filosofia clássicas; e linguística.

[5]     Tecido feito com lã cardada, originário da Escócia, geralmente cerzido com fios de duas cores.

[6]     No original: Permissive Prohibitory Bill. Projeto de lei de meados do século XIX que pretendia banir a comercialização de bebidas alcoólicas em terras britânicas, associando a embriaguez a diversas mazelas sociais, como pobreza, criminalidade, etc.

[7]     No original: Home Rule. No contexto do Império Britânico, correspondia à concessão ou devolução da autonomia governamental a uma colônia, para que fosse administrada por seus próprios cidadãos.

[8]     Inventado em 1826 pelo farmacêutico inglês John Walker, o primeiro fósforo de fricção foi batizado como “fósforo-lúcifer”, do grego Héosphoros, traduzido para o latim como lux-ferus (“portador da luz”). O termo era usado para identificar a estrela d’alva ou estrela da manhã (o planeta Vênus).

[9]     Expressão latina para designar um fato considerado suficientemente grave pelo Estado ofendido, para declarar guerra ao Estado supostamente ofensor.


Traduzido por Diego Quadros


Capa da antologia "Múmias", mostrando ilustrações de diferentes close-ups de uma múmia.

Este conto foi publicado originalmente na antologia “Múmias”, lançada pelo selo editorial independente Ficções Pulp! A obra está disponível por um preço simbólico na Amazon, caso desejem conferir.

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