O Preceptor de Bonecos

por Diego Quadros
6 minutos de leitura

O preceptor ergueu o punho, tremelicando, e matutou por alguns segundos antes de finalmente bater à porta. O primeiro dia em um novo trabalho é sempre perturbador, verdade. Porém, o que mais lhe bagunçava as ideias, naquele momento, era o fato de ter que prestar seus conhecimentos à gentalha grã-fina, a qual, bem sabia, formava-se, em sua grande maioria, por indivíduos extravagantes, doidivanas e excêntricos.

“Fezes”, pensava ele, autocensurado por seu próprio código de etiqueta sempre que necessitava dizer “Merda”, quando foi atendido pelo mordomo.

Oui? — perguntou o engomadinho com bigode fino de desenho animado.

Merde! Un français! — murmurou o Preceptor, baixinho, para que o mordomo não o ouvisse, sorrindo de canto dos lábios com uma tremenda sensação de alívio por sua autocensura não se aplicar a palavrões em outros idiomas. Afinal, no dia a dia, só precisava lidar com brasileiros, mesmo.

Oui? — repetiu o canalha, com a expressão absolutamente inalterada.

— Eu… hã… — O Preceptor desamassou um bilhete retirado do bolso. — Estou aqui para ver o Conde Stenbach… Sten… Back… Stenbock. Sou o novo preceptor de seu filho, o Condinho.

O serviçal com trejeitos de almofadinha, então, abriu um pouco mais a porta, estendeu o braço a fim de que o Preceptor adentrasse a mansão e alertou:

Monsieur Stenbock é um cavalheiro muito ocupado. Durante o dia, costuma trancar-se no quarto com seu filho e dedicar-se aos estudos de sua religiosidade sincrética, ou também gosta de passar o tempo escrevendo suas obras vanguardistas de ficção e poesia. Monsieur Stenbock é um mestre do decadentismo e do macabro.

— Sei — resmungou o Preceptor, sentando-se num sofá maior do que o bonde que costumava pegar diariamente, quando havia trabalho, jogando a maleta de lado e já preparado para uma espera imorredoura.


Quando foi acordado, já deviam ter passado umas três horas. Limpou a baba que escorria pela lateral da bochecha com a manga do paletó, enquanto ouvia berros agudos, tão escandalosos que ele, o Preceptor, adivinhou se tratar do dono da casa, o tal Conde Sten… Brock, ou o que fosse. Um comportamento espalhafatoso típico dos estroinas das classes mais abastadas.

— Cadê ele? — gritava o perdulário. — Onde está? Cadê o preceptor de meu filho, o Condinho?
O Preceptor ergueu-se do sofá, desamassando as bordas do paletó da melhor maneira que pôde, agarrou a maleta com a mão canhota e, com a destra, acenou para o dono da casa.

— Muito prazer, senhor Conde. Eu me chamo…

— O preceptor do Condinho — interrompeu o biltre. — É assim que o senhor será chamado nesta mansão.

O Preceptor logo percebeu que o homem de queixo protuberante, maior do que a própria cara de cavalo, além de embriagado, estava sob o efeito de entorpecentes. Mas não se importou, aprendera a lidar com gente pior nas décadas de ensino a moleques depravados, crianças mimadas e toda sorte de representantes da juventude bisbórria.

— Venha, ande logo! O Condinho já está ansioso para conhecer o seu novo mentor.

Subiram até o segundo piso e adentraram uma das infinitas portas espalhadas pelo corredor. A sala abrigava uma ampla biblioteca, cujas paredes eram todas cobertas por estantes que se erguiam ao teto, e não havia prateleira que não estivesse completamente preenchida por livros. No centro, uma escrivaninha espaçosa e uma cadeira luxuosa, sobre a qual estava sentado um boneco semelhante aos usados em números de ventriloquismo, com o tamanho aproximado ao de uma criança de dez ou doze anos. Vestia uma espécie de traje de internatos europeus.

— Pois então, onde está o seu filho? — perguntou o preceptor.

— Está aí! Bem na sua frente: o Condinho — respondeu o anfitrião.

— É uma piada?

— Desculpe, senhor? — reagiu o tal Conde Sten-alguma-coisa, com a boca em formato de “O”, levando a mão ao peito, como se fosse atingido por uma adaga no coração.

— O senhor Conde, por um acaso, insinua que esta m… esta… estas fezes são o tal do “Condinho”? Isto é um boneco de ventríloquo, por piedade! Tenha dó!

— Como o senhor ousa ofender o meu filh… — O Conde não teve tempo de finalizar a réplica. Tão rápido como apenas um pupilo ensinado por educadores jesuítas, o Preceptor aplicou-lhe um golpe de vara nos beiços que imediatamente lhe transbordou a boca de sangue.

Assustado, tomado pela surpresa, o nobre enroscou uma perna na outra, perdeu o equilíbrio e caiu sentado sobre o Condinho, que assistia à cena com um sorriso típico das crianças traquinas. Ele ainda tentou erguer o indicador, talvez em sinal de reprovação, ou, quem sabe, apenas um reflexo de autodefesa estimulado pelos instintos, mas outro varaço aplicado pelo Preceptor arrancou-lhe a unha dedo afora e acabou com quaisquer esperanças de reverter a situação e assumir o controle.

Chorando, Conde Stenbock enfiou o dedo ensanguentado na boca e tratou de chupá-lo, em uma tentativa infantil de estancar o corrimento do líquido vital. O Preceptor, alheio à birra do discípulo (porque, sim, a esta altura, Conde e Condinho não eram mais do que meros discentes em sua aula de boas maneiras), dirigiu-se a uma das estantes e percorreu os livros das prateleiras. Deu-se por satisfeito quando encontrou um exemplar de “A arte de se fazer respeitar – Ou tratado sobre honra”, de Arthur Schopenhauer.

Sorrindo maliciosamente, com a vara batendo na capa do impresso, virou-se para os alunos, imponente, majestoso, altaneiro. Conde Stenbock e seu filho, ou boneco, o Condinho, apenas acompanhavam o vaivém do instrumento corretivo, imersos em um silêncio digno dos apavorados. O Preceptor abriu o livro no primeiro capítulo.

— Pois bem — disse ele. — Todos nós, a menos que nos resignemos à doutrina fatalista dos estoicos, devemos encontrar o modo de nos fazer respeitar. Segundo Schopenhauer…


O Preceptor ergueu o punho e, sem matutar por nenhum segundo, bateu resolutamente na porta. “Merde”, pensou, ao ser atendido pelo mordomo francês. Sem esperar por convite, adentrou a mansão e subiu as escadas até o segundo piso. Na biblioteca, além de Conde e Condinho, aguardavam, no mais absoluto silêncio, Duque e Duquinho, Barão e Barãozinho, e mais alguns outros grã-finos extravagantes, doidivanas e excêntricos, amigos de Stenbock, que faziam de seus bonecos de ventriloquismo, fetiches para suas bizarras aspirações disfarçadas de paternalismo.

O mentor abriu um enorme sorriso, enquanto dava bom dia aos pupilos. Tornara-se um renomado preceptor de bonecos na cidade. Estava ganhando dinheiro para burro… e, de quebra, satisfazia seu ego ao exercer controle sobre aquela gentalha de estroinas e biltres das classes mais abastadas.


A ideia para essa história surgiu de uma leitura do artigo sobre o escritor Eric Stenbock na Wikipedia, que, segundo o texto, “mantinha cobras, lagartos, salamandras e rãs em seu quarto, além de um ‘zoológico’ no jardim que incluía uma rena, uma raposa e um urso. Quando viajava, invariavelmente era acompanhado de um cão, um macaco e um boneco em tamanho real. Stenbock chamava o boneco de ‘le Petit Comte’ (‘o condezinho’) e dizia a todos que era seu filho, insistindo que fosse trazido à sua presença diariamente; quando estava ausente, Stenbock perguntava sobre a saúde do boneco. (A família de Stenbock acreditava que um jesuíta inescrupuloso havia recebido somas vultuosas pela educação do ‘herdeiro’.)”


Confira uma análise detalhada desta história em forma de podcast feita pela IA:


Capa da antologia Os Triunfos de um Taxidermista, com uma pintura de um empalhador trabalhando em um pássaro e sendo observado por seu cão.

Este conto foi publicado originalmente na antologia “Os triunfos de um taxidermista e outros contos de vocações peculiares”, do selo editorial independente Ficções Pulp! A coletânea reúne contos de diversos autores brasileiros, além de uma tradução exclusiva feita por mim da história que dá título à obra, escrita por H. G. Wells. Caso deseje conferir o e-book, ele se encontra disponível para venda na Amazon.

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