A Maldita Voo de Zepelim do Professor Krüeger

por Diego Quadros
10 minutos de leitura

O professor Krüger resmungava coisas que soavam como palavrões a cada vez que alternava o olhar entre o horizonte à nossa frente e o mapa que tinha nas mãos. Não posso afirmar com certeza o que dizia porque o idioma alemão, para mim, não passava de um simples amontoado de xingamentos e maldições entoados com extrema agressividade. Mas um fato parecia bem claro àquele momento da viagem: estávamos perdidos. Voando a uns quatrocentos metros de altura, para onde quer que olhássemos através das janelas do zepelim, só conseguíamos avistar a imensidão verde do tapete formado pelas copas das árvores.

— Ficarr trranquila, meu querrida amiga jorrnalista — disse o professor, ao mesmo tempo em que tirava o olho de vidro e lustrava-o num lenço vermelho enfeitado por uma suástica preta. — Minha mapa apontarr corrrretamente a caminho parra o cidade perrdido. Basta seguirrmos em dirreção ao sol poente.

— Sei — respondi, ainda contemplando o fim de mundo abaixo do dirigível. — O mapa que o senhor garante ter pertencido a Percy Fawcett.

— O prróprria!

Sim, o próprio, que desaparecera dez anos antes numa malsucedida expedição em busca de uma cidade que só existia nas lendas dos índios selvagens e na qual apenas meia dúzia de palermas europeus ainda acreditava. Não fosse a quantia vultosa depositada antecipadamente em minha conta bancária – as promessas de parte do tesouro encontrado ao final “do aventurra” eu considerava descartadas –, jamais teria aceitado participar de tal empreitada.

Outra vantagem é que eu estava sendo remunerado basicamente para não trabalhar, visto que o contrato exigia que documentasse apenas os fatos extraordinários da incursão, feitos gloriosos da expedição patrocinada pelo novo regime instaurado na Alemanha, que andava de mãos dadas com o governo Vargas, e cuja expedição ia ao encontro dos planos do presidente brasileiro de implementar a marcha para o oeste, nome pomposo para designar a ocupação do ainda virgem interior do Brasil.

— O que o belo doutorra estarr achando do viagem? — continuou Professor Krüger, já com o olho de vidro recolocado na órbita, desta vez dirigindo a palavra para a bióloga que nos acompanhava.

— Bem, meu caro professor, no presente momento, a única coisa que me passa pela cabeça é tentar desvendar de que espécie são aquelas criaturas de asas enormes voando em nossa direção. Venham dar uma olhada!

Cheguei à janela da cientista antes do professor, que mancava com certa dificuldade sempre que se locomovia.

— “Maldito Frrente Ocidental!”, costumava espraguejar.

Ao longe, uma nuvem de seres alados planava em alta velocidade, prestes a vir de encontro ao dirigível. Os pássaros, ou seja, lá o que fosse aquele bando de animais voadores, chamavam a atenção pela envergadura. À medida que se aproximavam, pude estimar que se comparavam ao tamanho de pequenos aviões de combate. Aves de rapina, talvez? Não, nem os condores atingiriam sequer a metade da envergadura daqueles bichos. Ao chegarem mais perto, constatamos que o bico fino e alongado também era desproporcional em relação ao de qualquer espécie voadora existente na Terra. Pelo menos, as que não haviam sido extintas.

— Pterodáctilos? — perguntei à Doutora, receoso de ter proferido uma enorme bobagem.

Ela observou as criaturas por mais algum tempo antes de responder:

— Pterossauros, para ser exata! Grandes, feios e agressivos répteis voadores… e que estão prestes a nos atacar!

A bióloga nem bem terminara a frase, e o zepelim foi chacoalhado por um tremendo impacto. Fui arremessado contra a cientista e caímos abraçados ao chão. A despeito de suas vestimentas feitas para a exploração na selva, pude sentir o aroma doce e suave exalando de seu corpo. Como era atraente a ruiva! Tinha o charme sofisticado de uma femme fatale misturado à simplicidade rústica de um Allan Quatermain. Mas quem sabe eu não estivesse apenas inebriado pela fragrância daquela mulher? Ou pela ilusão de uma atração desmesurada?

— As dinossaurros estarr rasgando a balão da dirrigível! — gritou Professor Krüger, interrompendo-me os devaneios e trazendo-me de volta à situação. Ele se arrastava até o timão do veículo. — A gás estarr vazando! Vamos cairr!

— Não são dinossauros! — corrigiu a Doutora, desvencilhando-se dos meus braços e tentando se equilibrar em meio ao vaivém da cabine. — Viveram no mesmo período, mas pertencem a grupos diferentes. Aliás, era para estarem extintos há sessenta milhões de anos.

— Mas estes estão bem vivos! — repliquei, agarrando-me a uma barra para não tombar novamente. — E vão picotar todo o balão a bicadas! Nós vamos morrer!

— Ninguém morrerr com Prrofesorr Krrügerr! Segurrarr firrme parra pouso forrrçada!

Manobrando o timão e os controles com admirável destreza, o professor iniciou a descida do dirigível da melhor forma que as condições permitiam. A oscilação causada pelo ataque dos lagartos voadores diminuía gradativamente, e a perda de altitude em decorrência do vazamento de hidrogênio não parecia o bastante para representar uma queda livre. A Doutora indicou que havia uma clareira a noroeste, e o Professor Krüger imediatamente conduziu o zepelim para o terreno descampado. O pouso foi desconfortável, mas absolutamente seguro.

— Arrá! — vibrou o professor. — Richthofen morreria de inveja! — complementou, referindo-se ao lendário ás da aviação, o Barão Vermelho, a quem se gabava ter conhecido.

Desembarcamos para avaliar os danos ao dirigível. O balão apresentava dezenas de rasgos e furos. Não havia dúvidas de que se tornara imprestável. Eu não sabia se fora um milagre termos sobrevivido, mas a Doutora e o Professor Krüger não aparentavam quaisquer indícios de abalo. Como o sol já encontrava o horizonte, concluímos que seria melhor passarmos a noite na cabine do zepelim. Na manhã seguinte, partiríamos em busca de qualquer sinal de civilização, fosse ela uma cidade perdida ou um vilarejo que dispusesse de linha telegráfica.

Estávamos separando o equipamento indispensável à jornada quando um crescente farfalhar nas copas das árvores nos despertou a curiosidade. A Doutora largou seus instrumentos e avançou até o centro da clareira, sondando o terreno ao redor. Era estranho que as folhas produzissem um ruído tão intenso sem o mínimo vento, sequer uma brisa que o justificasse. A bióloga fez um gesto com o dedo exigindo silêncio e apontou para a direção de onde se originava o alvoroço. Súbito, algumas árvores de pequeno porte foram derrubadas com violência e diante de nós surgiu uma imensa criatura peluda, semelhante a um urso, dando passadas custosas, porém apressadas. Era como se estivesse fugindo de um perigo iminente. Ficamos petrificados, mas a besta não tomou conhecimento de nossa presença e sumiu entre a vegetação no lado oposto ao de onde viera. Recuperando os reflexos, consegui balbuciar:

— Mas o que, afinal, era aquilo?

— Um megatério — respondeu a cientista. — Uma espécie de preguiça gigantesca que viveu até cerca de vinte mil anos atrás.

— Marravilhoso! — disse o professor. — Parrece que estamos perrto do cidade perrdido. Onde mais encontrarríamos crriaturras supostamente extintas?

— Concordo, professor! — respondeu a Doutora, virando-se para nós com um largo sorriso. — Suponho que nosso amigo jornalista em breve será recompensado com bastante trabalho — complementou, ornamentando a frase com sutil ironia.

Não respondi porque a essa altura minha atenção se voltava para o grupo de homens selvagens que brotara do interior da mata, todos munidos de armas primitivas como lanças, tacapes, arcos e flechas e outros instrumentos para os quais eu não seria capaz de atribuir um nome. Pareciam tão surpresos como nós, e o que dava ares de ser o líder murmurou sons de uma língua que não se assemelhava a qualquer outro idioma conhecido. Seriam índios primitivos? Não lembravam neandertais ou homens das cavernas. Por outro lado, também se distinguiam dos indígenas brasileiros em inúmeros aspectos, a começar pelo tom da pele, um pouco mais escuro que o dos nativos sul-americanos.

Professor Krüger ousou dar alguns passos à frente na tentativa de estabelecer uma precária comunicação, mas os selvagens imediatamente ergueram suas armas a as apontaram para nós. Era possível sentir o cheiro de morte naquela úmida atmosfera amazônica. Então o professor teve uma ideia inusitada, mas que surtiu algum efeito, se não para nos salvar, ao menos para adiar nossas execuções. Com gestos lentos e precavidos, retirou seu olho de vidro e o ergueu entre os dedos. Um burburinho imediatamente se deu entre os selvagens, espantados com o globo ocular postiço. Eu esperava que sua reação decretasse a harmonia de nosso encontro. O líder dos primitivos, no entanto, bradou algo que soava como um grito de guerra, e seus companheiros dispararam dardos envenenados de suas zarabatanas.

Em questão de segundos, tombamos desfalecidos.

Não sei se passaram-se horas ou dias quando acordei. A dor de cabeça era semelhante a uma ressaca. Com muito esforço, consegui evitar uma golfada no rosto do professor. Ele e a Doutora também despertavam, ainda tontos pelos efeitos do veneno. Estávamos na base de um pequeno altar em forma de pirâmide, poucos metros acima do chão. Olhei ao redor. Cabanas feitas de argila e palha se estendiam até onde a vista alcançava. Eram moradias simples, mas muito bem construídas. Seus habitantes deviam ser aqueles milhares de selvagens que cercavam o altar, observando-nos em silêncio. Um deles se destacava pelas garbosas e coloridas plumas que lhe enfeitavam o corpo de pele dourada, como se fosse banhado em ouro. Reconheci o rosto de feições europeias do homem, pois muitas foram as ocasiões em que o analisara através de fotografias. Não havia dúvidas. Tratava-se de Percy Fawcett!

Welcome to my kingdom! — disse, em sotaque britânico inconfundível, enquanto estudava o olho de vidro do Professor Krüger em suas mãos.

Acrescentou que não estava certo do que fazer conosco. Poucos foram os humanos civilizados a transpor as fronteiras da cidade perdida, e todos tiveram o mesmo destino: a caverna das feras primitivas. Era preciso garantir o segredo daquele paraíso intocado pelas mãos gananciosas do homem. Tremi só de imaginar o que haveria dentro da tal caverna. Tiranossauros? Tigres-dentes-de-sabre? Canibais pré-históricos? Fawcett assegurou que nos poupara até aquele momento somente porque seus governados haviam se impressionado com o olho postiço do professor. Não deixava de ser irônico o fato de um europeu que pregava a defesa do território incógnito se referir aos nativos como “seus governados”.

Professor Krüger e a Doutora explicaram os propósitos da expedição. O velho alemão angariou a simpatia do explorador britânico convertido em cacique depois de expor em minúcias suas intenções de seguir os passos de Fawcett em busca de um sonho ridicularizado por muitos, e que agora se demonstrava real. A bióloga contou sobre suas aspirações de descobrir novas espécies num mundo tão vasto e não decifrado em sua totalidade pelo conhecimento humano. E, ainda que não abrisse a boca para se defender, era visível que Fawcett nutria desejos obscuros em relação aos atributos dela. Quanto a mim, Krüger argumentou que minha função era registrar a viagem através de artigos e fotografias, o que o britânico considerou ameaçador e desnecessário, tido que jamais retornaríamos daquele lugar.

Então uma espécie de julgamento foi montado para decidir o meu destino, onde Fawcett fazia o papel de juiz, Krüger e a Doutora representavam meus advogados de defesa, e os nativos interpretavam o corpo de jurados. Impotente diante da situação, conformei-me em rezar para que não fosse atirado na caverna das tais feras primitivas. Se era para morrer, que fosse executado com dignidade, e não devorado vivo por bestas esfomeadas.

Ao cabo de uns poucos minutos, Fawcett apresentou o veredito: os nativos aceitariam poupar minha vida em troca de meus olhos. Queriam guardá-los como itens sagrados junto ao olho de vidro de Krüger.

— Eu sentirr muito, meu querrida amigo! — desculpou-se o alemão. — Ninguém morrerr com Prrofesorr Krrügerr! Mas não poderr garantirr as condições disto.

Fui imediatamente agarrado pelos selvagens e a última coisa que vi foi a Doutora deixando escapar uma discreta lágrima de suas pálpebras, antes de ter meus olhos vazados e arrancados das órbitas, blasfemando contra mim mesmo por ter aceitado o convite “parra a maldita voo” de zepelim do Professor Krüger.


Confira uma análise detalhada desta história em forma de podcast feita pela IA:


Imagem de capa da antologia "O mundo onde o tempo parou", mostrando a silhueta de um tiranossauro rex e outros animais contra o Sol, que se põe no horizonte.

Este conto foi publicado originalmente na antologia “O mundo onde o tempo parou”, lançado pela Cartola Editora em 2020. A coletânea possui dezenas de histórias de diferentes autores sobre a temática de mundo perdido.

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