… informações atualizadas, o governo mantém a orientação de que as pessoas permaneçam em suas casas por questões de segurança. Relatos enviados pelos ouvintes descrevem situações caóticas em diferentes bairros. Saques e arrastões têm sido registrados em pontos isolados da cidade. Continuem sintonizados para…
Boom! Boom! BOOM!
As pancadas que estouravam no outro lado da porta se tornavam cada vez mais violentas, e eram suas costas que recebiam a energia que a madeira não conseguia absorver. Por quanto tempo resistiria? Grosso modo, seu corpo era a última barreira entre aquela coisa lá fora e o bebê que sorria para ela da cama, alheio a toda insanidade ao redor. Um sorriso inocente. Um rostinho tão indefeso.
A pressão dos impactos era tamanha que podia ouvir o batente cedendo a cada golpe desferido pela criatura. Ao perceber a madeira rachando, não teve dúvidas de que a porta logo seria arrombada. Seu coração acelerava, doía-lhe por dentro do peito. Percorreu o quarto com o olhar. E se tentasse arrastar o roupeiro? Não, de nada adiantaria. Era pesado demais, e seria apenas uma questão de tempo até que o monstro conseguisse invadir o recinto. Não havia para onde fugir. Morando no oitavo andar, a janela era uma alternativa descartada.
Tentando organizar o raciocínio em meio a um vórtice de emoções, ela teve a ideia de correr ao abajur e erguê-lo diante do corpo, transformando o utensílio em uma improvisada arma de defesa. Cravou os pés no chão, enrijecida no meio do caminho entre a porta e a cama, onde o filho continuava dando suas risadinhas faceiras. Murmurou que poderia vir o desgraçado lá fora, buscando convencer a si mesma de uma coragem distante da realidade.
BOOM! BOOM!
Foram necessárias apenas mais duas ou três pancadas para que a porta se escancarasse, revelando a figura asquerosa que até pouco antes era o pai do bebê, seu marido. Os olhos esbranquiçados, a saliva gosmenta escorrendo dos lábios, a pele repleta de pústulas, exalando o odor pútrido dos cadáveres em início de decomposição. Mas, de alguma forma, ele permanecia vivo. E possuído por um frenesi indomável.
Ela esboçou uma reação com o abajur, mas a criatura avançou com rapidez sobre-humana, agarrando-lhe pelos ombros e fazendo com que ambos caíssem deitados na cama. O hálito pestilento ingressou fundo em suas narinas, atordoando-lhe o cérebro, obrigando-lhe a reprimir a ânsia de vômito. Endureceu os músculos na tentativa desesperada de arremessar o monstro para longe de si, para longe do bebê, em direção ao inferno ao qual ele agora pertencia. Não obteve êxito: a fúria animalesca parecia dotar o marido, o ex-marido, a besta, ou seja lá o que fosse, de um poder além do normal.
Quando os dentes penetraram em sua carne e arrancaram-lhe um naco do pescoço, a visão embaçou e ela sentiu que estava prestes a afundar no breu da inconsciência. O sangue espalhou-se pelo lençol. Era como se a mancha vermelha anunciasse que toda esperança a partir de então seria inútil. Estava prestes a morrer, devorada pelo homem que prometera lhe amar na saúde e na doença. E o que aconteceria ao filho? Também morreria canibalizado pelo próprio pai, depois que ela — a mãe, a criadora, a protetora — deixasse de oferecer resistência?
Virou o rosto para o bebê. Ele já não sorria. Não dava mais risadinhas. Pálpebras arregaladas, suas linhas faciais denunciavam que estava prestes a irromper em lágrimas. Era o que bastava para que ela despertasse forças primordiais ocultas no subconsciente, impulsionadas pelo instinto de sobrevivência e de preservação da prole. Agarrou o animal raivoso pelos trapos que lhe cobriam e ergueu-se da cama num ímpeto, arrastando-o até a janela e jogando-o para um mergulho de quase trinta metros. Esperou para ver o marido espatifando-se no concreto e só então deu as costas para a janela, retornando ao bebê. Ainda parecia assustado, o pobrezinho, mas já não apresentava sinais de que fosse chorar.
… na escassez das forças policiais, milícias armadas transitam pelas ruas próximas à região central. Já os fiéis têm lotado o saguão da catedral em busca de esperança e conforto espiritual. Em coletiva de imprensa realizada há pouco, as autoridades de saúde imploraram para que se evitem aglomerações, em razão de a nova praga ser altamente contagiosa, transmissível pelas secreções dos infectados, como saliva, sangue ou feridas purulentas…
O bebê dormia um sono de poucas agitações. O mesmo já não se poderia dizer da mãe. A mordida no pescoço doía, mas nada comparado à dor pungente que sentia pelo resto do corpo. O interior do organismo ardia como labaredas atrozes; por fora, no entanto, ela tremia de frio. Precisava encarar o fato de que o vírus da peste circulava em seu sangue. Transformar-se num daqueles bichos medonhos era apenas uma questão de tempo. Mas quanto? Horas? Minutos? Decidiu não ficar esperando por um auxílio que jamais chegaria.
Rasgando o lençol da cama, fez um sling improvisado e acomodou o bebê em seu colo com delicadeza. Antes de partir, ainda apanhou o bichinho de pelúcia favorito do filho e depositou-o junto às mãozinhas da criança.
Como devia ser bom refugiar-se no conforto de um sono tranquilo, alheio ao apocalipse que virava o mundo de ponta-cabeça. Haveria esperança de um futuro para os pequenos?
Da mesma forma que o prédio, a rua onde morava não apresentava indícios de vida. Gritou por socorro, mas o único retorno que obteve foi o eco de sua voz, revestida de um tom gutural, inumano. Insistiu em pedir ajuda, implorando para que alguma alma caridosa acolhesse o bebê, que o mantivesse protegido da doença, protegido de si mesma, porém só recebeu olhares desconfiados dos vizinhos através de frestas em suas janelas. Ou, pelo menos, era o que imaginava, pois a esta altura tinha dúvidas se não começava a sofrer de alucinações.
Era até capaz de ouvir um burburinho a distância: motores de carro, pessoas conversando, mesmo o barulho das rodas do trem deslizando sobre os trilhos. Mas como seria possível? A linha de metrô passava em frente à praça da catedral, no mínimo a um quilômetro dali. Devia realmente estar alucinando. Mas quais eram suas chances se não arriscasse? Seria mais fácil encontrar abrigo para o filho em outro lugar, afastado daqueles vizinhos covardes e imprestáveis.
… enquanto especialistas de diversas áreas tentam encontrar uma solução para esta crise de dimensões catastróficas, segmentos da sociedade ocupam-se em apontar um culpado pela disseminação do vírus. Pastores evangélicos acusam praticantes das religiões de matriz africana de bruxaria e vodu. Políticos da extrema-direita especulam se a China não utilizaria armas biológicas para devastar o Ocidente e assumir a liderança mundial. Rumores no setor científico afirmam que o vírus foi criado nos laboratórios de uma universidade pública, e ainda há os que sugerem intervenção alienígena…
A vista da praça em frente à catedral era desoladora. Pessoas corriam desorientadas, fugindo das hordas de predadores que fluíam de ruas adjacentes como uma enxurrada. Algumas vítimas tombavam ao chão e, impotentes, eram comidas vivas pelos infectados, que disputavam com rosnados ferozes uma porção de carne fresca. Cães infernais lutando por um bife.
Na catedral, a situação não parecia melhor. A evasão em massa do templo indicava que a praga havia se alastrado pelo terreno sagrado. Fiéis jorravam através do pórtico apenas para caírem nas garras das criaturas famintas. Os que eram abençoados com uma morte rápida, não tardavam em se reerguer para uma pós-vida às avessas, cambaleando — ou mesmo correndo — em direção ao que seus faros ordenavam.
Ouviu atrás de si o guincho de uma frenagem brusca. Paralisada no meio do asfalto, por pouco não fora atropelada pelo automóvel de um casal de idosos. Aproximou-se das janelas, apontando para o bebê em seu colo, suplicando para que… para o quê, mesmo? Já não lembrava em detalhes o motivo de estar ali e teve que forçar o cérebro a fim de deduzir que o bebê precisava ser levado para longe daquele tormento.
Não entendeu por que os velhos a encaravam horrorizados, mas ela não tinha como saber que, no lugar de palavras, os sons emitidos por sua boca eram grunhidos ininteligíveis. Da mesma forma, se houvesse reparado em seu reflexo no vidro da janela, veria um rosto coberto de chagas necrosadas e uma nascente de espuma amarelo asquerosa vertendo no canto dos lábios.
Recuperando-se do espanto, o motorista engatou a marcha e arrancou o veículo tão depressa quanto lhe permitiam suas habilidades. O barulho do motor despertou a atenção de algumas criaturas para ela e o bebê. Em meio a rugidos, as feras começaram a rastejar e a correr em direção ao punhado de carne inerte no colo da mãe.
Só lhe restava fugir. Sem rumo certo. Movida apenas pela esperança de encontrar um local seguro para o filho antes de se transformar numa daquelas coisas. E o tempo estava acabando.
… recentes informam que as milícias estão atirando em qualquer criatura, bípede ou quadrúpede, que apresente comportamento estranho, utilizando para tal decisão critérios totalmente subjetivos. A pedido das Nações Unidas, o país fechou todas as suas fronteiras, e um projeto de quarentena obrigatória está sendo elaborado às pressas pelos legisladores…
Parou de correr assim que seus perseguidores sumiram de vista. Não estava exatamente cansada, mas sentia os músculos enrijecendo, o que dificultava a locomoção. A despeito de toda agitação, o bebê continuava dormindo no sling. Neste momento, teve consciência do aroma de sangue fresco, quentinho, fluindo sob a pele macia da criança. Dera-se por conta de que um apetite voraz começava a afligir seu estômago. Contemplou uma artéria pulsando vida para o organismo do filho, irrigando a carne de frescor. Tão suculenta…
Por sorte, avistou homens depositando em uma camionete produtos retirados de um mercado próximo, cuja vitrine estava estilhaçada. Alguns assobiavam, outros vestiam fardas e empunhavam espingardas e fuzis. Um tanto hesitante, arrastou-se em direção a eles, erguendo uma das mãos em sinal de paz e, com a outra, indicando o bebê em seu colo. Murmurou um pedido de ajuda que, para os homens, soou como um rosnado grotesco. Não menos curiosos do que desconfiados, eles interromperam o saque para assistir, de armas apontadas, é claro, à cena protagonizada por aquela criatura bizarra.
Dominada por uma fome incontrolável e sentindo a razão esvair-se da mente, ela agarrou o filho com todo o carinho e depositou-o sobre o asfalto. Olhou pela última vez para aquele corpinho estendido, dormindo o sono dos puros. Teve vontade de chorar, mas suas glândulas agora eram incapazes de produzir lágrimas.
Recuou alguns passos, sob a mira dos homens. Estavam todos atentos, divertindo-se com o grotesco. A esta altura, ela já nem se importava. Flashes de memória intercalavam-se com instintos primitivos. Como em uma fotografia, viu a si própria dando à luz. (Fome). Ouviu sua voz cantarolando melodias de ninar. (Grunhidos). Sentiu o prazer de carregar o filho nos braços. (Espasmos). Lembrou o cheirinho agridoce do leite regurgitado pelo bebê. (Sangue). Recordou o gosto da papinha que sempre experimentava antes de alimentá-lo. (Carne).
Os homens não se moveram quando ela tombou ao chão, retorcendo-se e convulsionando. Engasgava-se com os próprios fluidos, agonizando por momentos intermináveis até que a respiração finalmente cessasse e ela conseguisse morrer. Foi só então que os homens levaram seus dedos ao gatilho e definiram a mira.
O bebê acordou assustado com o estampido dos tiros. Imediatamente, desatou a chorar. Por trás de seu lamento, era possível ouvir a gargalhada dos homens, que nem perceberam que os olhos da mãe estavam diretamente alinhados ao ursinho de pelúcia jogado a poucos metros do filho.
Confira uma análise detalhada desta história em forma de podcast feita pela IA:

Este conto foi publicado originalmente no volume 02 da antologia “Condenados”, lançado pela Cartola Editora em 2020. A coletânea possui dezenas de histórias de diferentes autores sobre a temática de zumbis.
Caso queiram conferir, a antologia está à venda na Amazon.
Nós sempre consumimos livros e filmes sobre apocalipses diversos ambientados no exterior, e por isso eu AMEI essa duologia, pois o apocalipse zumbi se inicia aqui, no Brasil!
São vários contos de vários autores e gostei muito de praticamente todos, principalmente Tudo Certo, Nada Resolvido (Karina Cruz – esse é cômico!), Quo Vadis (Thiago Queiroz), O Refugio (Bruny Guedes) e O Instinto Materno (Diego Quadros).
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