Bela Lugosi como Drácula

por Diego Quadros
8 minutos de leitura

— Eu sou Drácula!

Eis a frase com que Bela Lugosi infernizava a equipe e o elenco, repetindo-a por vezes incalculáveis, andando de um lado para o outro no set, gesticulando no ar, alheio a tudo e a todos ao redor. No começo, causava uma certa estranheza, mas não preocupava ninguém. “É o método”, diziam, referindo-se a uma forma de atuação em que o artista incorpora o personagem durante o tempo inteiro, mesmo quando não está gravando as tomadas. Um estilo que teve suas origens no sistema do lendário professor de teatro Constantin Stanislavski. Em 1931, porém, Hollywood ainda não estava preparada para isso.

David Manners, o galã que interpretava John Harker, noivo de Mina, chegou a resmungar com o produtor Carl Laemmle Jr.:

— É um homem muito educado, disso não há dúvidas. Mas o cara não fala com ninguém. Dá bom dia quando chega no estúdio, boa noite quando vai embora e, nesse meio tempo, só conversa consigo mesmo nesses delírios em que incorpora o vampiro.

— Vamos deixar o húngaro em paz — respondeu o produtor. Tinha apenas 20 anos, mas era filho do dono da Universal Pictures, e sua palavra era lei. — Ele está fazendo muito mais do que foi pago para fazer. Lembremos que está ganhando apenas 500 dólares por semana, um salário menor do que o seu, David.

A partir de então, Manners nunca mais reclamou das esquisitices de Lugosi, mas sua vingança tomaria forma seis décadas mais tarde, quando morreu nonagenário sem nunca ter assistido à primeira adaptação cinematográfica da obra de Bram Stoker, da qual ele próprio participara.

As coisas começaram a piorar mesmo quando Cindy, a jovem assistente de produção, veio reclamar com o diretor do filme.

— Sr. Browning, receio que temos um problema — alertou. — Não quero mais trabalhar com o sr. Lugosi. Ele acaba de tentar me hipnotizar.

— Ele o quê?

— O sr. Lugosi tentou me hipnotizar em seu camarim. Eu queria avisar que faltavam dez minutos para a rodagem das próximas cenas, então ele ficou me encarando com aquele olhar alucinado, como se possuído por sei lá o que, antes de falar: “Eu sou Drácula! Vá até os seus companheiros e anuncie isso. Eu sou Drácula! Obedeça!” No início, achei que fosse piada, mas me senti desconfortável e recuei alguns passos. Ele começou a retorcer as mãos pelo ar, gritando: “Venha aqui! Venha aqui!” Depois disso, saí correndo e aqui estou, relatando esse comportamento inapropriado ao senhor.

— Mas estas são falas do filme. Estão todas anotadas no script — respondeu o diretor. — Ele provavelmente estava ensaiando os diálogos. Até porque, como você mesma disse, o inglês dele não é dos mais claros.

— Eu estou avisando. O homem está enlouquecendo. Se é que já não era completamente maluco. Acho melhor que o senhor vá conversar com ele.

Tod Browning recebia para dirigir o filme, não as esquisitices de seus atores. Ou nem isso, a julgar pelo que rumorejavam algumas línguas afiadas, que afirmavam que a tarefa cabia mesmo a Karl Freund, o diretor de fotografia. Foi justamente a ele que Browning recorreu para dar um esporro em Lugosi.

Freund era alemão, mas, à época de seu nascimento, sua terra natal, a Boêmia, fazia parte do Império Austro-Húngaro — assim como Lugos, berço de Lugosi (sim, o nome artístico fora adotado em homenagem à cidadezinha). E esta era a única coisa que ligava ambos. De resto, eles se odiavam.

Quando chegou no camarim, Freund já saiu disparando:

— O pessoal está começando a se encher dessa bobagem de você achar que é o personagem da história. Estão todos incomodados e…

— Ora, mas quem você pensa que é para invadir meu território e proferir tais vilipêndios, seu alemão barrigudo?

— Escute, Lugosi, eu só cumpro ordens do estúdio…

— Esse estúdio salafrário o qual ajudei a comprar os direitos do livro por uma bagatela? Sabe quanto a viúva de Stoker queria para liberar a obra, Freund? Trezentos mil dólares! Trezentos mil! E eu me dispus a mandar inúmeras cartas para a velha por meses, até que finalmente a convenci a aceitar míseros quarenta mil. E esse mesmo estúdio usou de todos os ingratos recursos para me deixar de fora, obrigando-me a concordar com um salário de pouco mais do que três mil dólares para receber o papel. Sou o que menos ganhou dinheiro com esse trabalho, Freund. Logo eu, o próprio vampiro. Eu sou Drácula!

— Por Deus, Lugosi, você não é vampiro coisa nenhuma. Você é um maldito ator húngaro fazendo um maldito filme de horror de baixo orçamento. — Freund aproveitou a vantagem de seu corpo amplo para agarrar Lugosi pelos ombros e virá-lo contra o espelho. — Veja! Você até tem reflexo.

O ator pareceu não se importar. Seus olhos voltaram a assumir aquele aspecto alucinado referido pela assistente de produção Cindy. Em seu delírio, era possível que sequer enxergasse o próprio reflexo.

— Eu sou Drácula! — murmurou. — Eu sou Drácula!

Freund desistiu e abandou o camarim balançando a cabeça, inconformado. Bela Lugosi parecia realmente um caso perdido…


Dias depois, ao retornarem de uma folga no fim de semana, elenco e equipe se reuniram no cenário do castelo para a gravação das tomadas finais da película.

Logo, notaram a ausência de Lugosi. Teria endoidecido de vez e desaparecido no mundo? Os mais otimistas preferiam acreditar que estava trancafiado em casa, acometido pela ressaca ou, na pior das hipóteses, desmaiado de bêbado. Ligaram para o chefe do estúdio, que se encarregou de despachar um funcionário até a residência do ator.

Enquanto isso, a equipe ajeitava o set. Posicionamento da câmera, instalação dos cabos, disposição dos objetos cenográficos, ensaio dos atores. Preparavam-se para gravar a tomada em que Van Helsing quebra a tampa do caixão de Drácula para fazer uma estaca improvisada e lhe enfiar no coração. Participariam da sequência, também, o Harker de Manners e Helen Chandler no papel de Mina Seward.

Chandler, àquela época, já enfrentava uma dura batalha contra o alcoolismo. Era comum aparecer embriagada nas filmagens e, frequentemente, debochava dos rituais de Lugosi. Não foi diferente nesta ocasião. Aproveitando a ausência do húngaro, meio cambaleante, ela caminhou próxima aos caixões, imitando o sotaque do ator e seus trejeitos peculiares.

— Eu sou Drácula! — balbuciava, retorcendo os braços no ar, enquanto a equipe e o elenco explodiam em gargalhadas. — Sangue é vida! Existem coisas muito piores à espera do homem além da morte. Eu sou Drácula!

Em certo momento, até mesmo o diretor Browning dava fartas risadas da paródia de Chandler. Estavam todos achando graça. Ficou claro que os envolvidos no filme não gostavam de Lugosi. Ou, pelo menos, sentiam-se muito mais confortáveis na ausência dele.

O que ninguém esperava era ouvir o rangido da tampa de um dos caixões ao ser aberta. Era inacreditável, mas o alvo das sátiras maliciosas, ele próprio, Bela Lugosi, erguia-se do ataúde. Teria passado o fim de semana inteiro ali, enclausurado no leito macabro? As risadas imediatamente cederam lugar ao espanto. Queixos caídos, olhos arregalados, ficaram todos apavorados com o nível de insanidade a que ele chegara.

Lugosi, por sua vez, ignorando quaisquer reações de seus associados, mirava apenas Helen Chandler. Sua expressão era grave, sisuda, porém tranquila. Ele andou lentamente até a atriz, era quase como se flutuasse.

— A senhora duvida de que sou mesmo um vampiro?

A atriz não soube o que responder, mas foi inevitável que deixasse um sorriso meio de deboche, meio de constrangimento, tomar forma em seus lábios.

— Pois então, sinta — disse Lugosi, enquanto abria a camisa no altura do peito. O set inteiro ficou em absoluto silêncio. O ator pegou suavemente a mão de Helen Chandler e a conduziu ao seu coração. A essa altura, todos, equipe e elenco, observavam com olhos semicerrados, inertes como estátuas. Alguns sentiam medo, era evidente. Outros, mera curiosidade. Não demorou para que a atriz deixasse escapar um grito seco, agudo, e recolhesse a mão por instinto.

— Não… não sinto nada — gaguejou.

Lugosi, como que satisfeito por uma vingança bem arquitetada, desatou a gargalhar pelo set, diante de uma plateia estupefata e desconfortável. Em seus íntimos, sentiam-se aliviados pelas filmagens estarem no fim. Ninguém suportaria um dia a mais de trabalho ao lado daquele louco.

Algum tempo depois, com os ânimos atenuados por muitas ameaças do produtor Laemmle Jr. contra quem ousasse abandonar o serviço, concluíram a última tomada do cronograma. Lugosi já havia se recolhido ao seu camarim, visto que mal aparecia na cena. Chandler, então, olhou para Manners; Manners encarou Browning; Browning mirou Freund. Respiravam todos mais leve. Menos Cindy, a assistente de produção, que fora obrigada por Laemmle Jr. a se dirigir ao camarim de Lugosi para atender às suas solicitações derradeiras.


Horas mais tarde, um faxineiro encontrou o lívido cadáver de Cindy estendido no chão. Não havia sinal do ator. Telefonaram imediatamente para a Universal Pictures, e Laemmle Jr. utilizou de toda sua esperteza para abafar o caso. Sabia que tinha um vindouro sucesso de bilheteria nas mãos.

Os jornais mencionaram que a assistente de produção cometera suicídio ao cortar os pulsos. Mas os executivos do estúdio e uns poucos envolvidos no filme, como o diretor Tod Browning, sabiam que o laudo da necropsia indicava hemorragia como causa da morte, ocasionada pela perda total de sangue através de dois orifícios no pescoço da vítima.


Confira uma análise detalhada desta história em forma de podcast feita pela IA:


Capa da antologia A Donzela Vampira, do selo Ficções Pulp!, mostrando a pintura "Vampire" (1895), de Edvard Munch, onde uma vampira de cabelos ruivos envolve um homem nos braços.

Este conto foi publicado originalmente na antologia “A Donzela Vampira e Outros Contos”, lançada pelo selo editorial independente Ficções Pulp! A obra está disponível por um preço simbólico na Amazon, caso desejem conferir.

Um conto clássico de Hume Nebit abre o volume e ganha o leitor de cara, pois é excelente. Deixa-o, é claro, com medo do que virá depois, uma vez que se trata de textos de autores contemporâneos. Mas nenhum dos tês contos seguintes decepcionam, muito pelo contrário: nocauteiam o leitor, como diria Júlio Cortázar. Em especial o último conto, “Bela Lugosi como Drácula”, que é uma obra-prima. O volume integra a coleção Clássicos & Contemeporâneos, da qual já comprerei mais um volume, que também parece ser material de primeira.

Antonio Olivieri

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