Burn, Baby, Burn (Disco Inferno)

por Diego Quadros
19 minutos de leitura

Where did you come from, angel?

How did you know I’d be the one?

Did you know you’re everything I prayed for?

(…) I believe in miracles

Where’re you from? You sexy thing

Hot Chocolate, “You Sexy Thing”

 — Você me faz sentir bem real, Miguel — disse Lúcia. — Me faz lembrar dos prazeres simples. Sorrisos, beijos, abraços… Celebremos à vida! — Ergueu as mãos no ar e balançou a cabeça, como se estivesse acompanhando o som dos Bee Gees. — Mas você, definitivamente, não parece – e muito menos dança – igual ao John Travolta.

Saíamos do Cine Baltimore III. Devia ser a quarta ou quinta vez que tínhamos assistido a Embalos de sábado à noite. Naquele ano, a animação, de fato, havia se tornado uma febre, fosse em Nova Iorque ou nesta capital com ares provincianos e seria numa dessas noites febrilmente hedonistas, embaladas pelas insinuantes canções disco, que nos despediríamos. Duas ou três semanas depois? Por aí.

— Ei, mas é claro que nos parecemos. Pelo menos num aspecto: ambos trabalhamos numa ferragem — brinquei.

Lúcia gargalhou.

— Ah, mas esse é o Tony Manero, seu bobo. E vocês se assemelham em outra coisa: são um tanto cheios de si, também.

— Tá me chamando de arrogante?

— Nãããooo. Eu só tô querendo dizer que o Tony, pelo menos, dança bem. Já você…

— Pois eu aposto que sou capaz de chegar no nível desse canastrão, sim. É só treinar uns passinhos, Lúcia.

— Será? — desafiou, sempre com um sorriso estendendo-lhe os lábios.

Ergui as sobrancelhas e o dedo indicador, solicitando que prestasse atenção, e lhe alcancei minha jaqueta a fim de ter mais liberdade nos movimentos. Remexi os quadris de um lado ao outro a título de aquecimento. Então, abri o espacate mais doloroso da minha vida. O urro que tonitruou de meus pulmões acabou por chamar a atenção de alguns pedestres, que se apressaram em acudir meu pobre corpo estirado na calçada, completamente incapaz de movimentar as pernas.

Atordoado, e nem por isso menos envergonhando, procurei Lúcia com o olhar. Reconheci o semblante sorridente em meio às dezenas de expressões curiosas ao redor. Não parecia muito preocupada, e eu não poderia culpá-la, pois a cena realmente estava mais para algo deprimente e risível do que digno de consternação.

Senhor, como eu fora estúpido!

***

Na primeira vez em que vi Lúcia, ela estava sobre o palco do pequeno teatro da universidade federal, representando o Diabo numa livre adaptação da peça Fausto, fazendo jus ao personagem com seus cabelos vermelhos que despencavam até as nádegas e a pele de uma brancura vampiresca. Era magra e devia ter quase a minha altura. Difícil não chamar a atenção.

Em determinada parte da apresentação, os censores da Polícia Federal invadiram o recinto e ordenaram que todos, espectadores e atores, encostassem na parede, enquanto vasculhavam bolsas e carteiras. Por um acaso do destino, ficamos lado a lado.

— Belo começo, não? — observou ela.

— Perdão? — respondi, sem compreender a intervenção.

— Você, aqui. Primeira vez em que assiste à peça e já estreia com uma batida dos meganhas.

Meu rosto deve ter deixado escapar a confusão de meu cérebro com suas palavras, visto que ela engatou:

— São sempre os mesmos que vêm nos assistir. Familiares, colegas, amigos. É fácil perceber uma cara nova em meio à plateia.

— Sim, sim. Imagino. E vocês sempre são interrompidos na metade do espetáculo pelos agentes?

— Ah, pra esses hipócritas, todo o pessoal do teatro, todos os artistas são subversivos. — Em seguida, juntou as mãos, formou uma concha ao redor da boca e vociferou: — Abaixo a repressão!

— Cala essa boca, piranha! — gritou o que parecia ser o chefe dos policiais.

— Viu? São uns cretinos! — complementou, sorrindo. Na sequência, estendeu-me a mão esquerda: — Prazer, Mefistófeles. Digo, Lúcia.

— Prazer, Lúcia. Sou o Miguel. Digo, Fausto — devolvi, sabendo que já me encontrava apaixonado.

***

— Morango ou chocolate? — perguntava a mim mesmo, sob o olhar impaciente da garçonete. Lúcia, resoluta demais para uma jovem adulta, escolheu sem dificuldades o primeiro.

— Gosto das frutas vermelhas — comentou. — Aliás, amo a cor vermelha.

— É, eu percebi — respondi, olhando para o seu cabelo e descendo até seu vestido preto com rosas… vermelhas.

— Já se decidiu? — interveio a atendente. — Não sei se vocês perceberam, mas hoje a lancheria está um inferno.

Escolhi chocolate, a fim de contrastar com o milk-shake de Lúcia.

— Por falar nisso, nesse tempo em que você esteve se recuperando do machucado nas pernas, abriu uma nova discoteca na cidade. Disco Inferno. Já ouviu falar? — perguntou ela.

Balancei a cabeça em negativa.

— Então, dizem que é uma boate que abre de tempos em tempos em cidades diferentes. Nunca permanece por mais de uns poucos meses no mesmo local.

— Isso me parece coisa de sonegadores de impostos.

— Pode ser, bobalhão. Mas é inegável que o fato dá uma aura de lenda ao lugar.

— É uma bela jogada de publicidade. “Venham todos, antes que a oportunidade de nos conhecer desapareça!” Apela pro senso de urgência. Algo típico do capitalismo, Lúcia.

— Que seja, Miguel! Mas que mal faria em conhecermos a discoteca? Andam falando que o clima por lá é caliente.

— Também, pudera. Com um nome desses.

— E então? Vamos?

— Lúcia, você viu que, da última vez em que arrisquei uns passos de dança, quase parei numa cadeira de rodas. Eu definitivamente não tenho jeito pra coisa. Duas semanas entrevado na cama me bastaram pra desistir da ideia de dançar igual àquele corno do Travolta.

— Talvez você possa aprender alguma coisa com Johnny, El Diablo.

— Com quem?

— Dizem que é o mestre de cerimônias do lugar. Quem viu, afirma que é o melhor dançarino de todos. Que é impossível ficar parado perto dele quando está em ação.

Fomos interrompidos pelo retorno da garçonete. Depositou os milk-shakes na mesa.

Agradeci. Ela virou as costas e partiu.

— E então? — insistiu Lúcia.

— Poxa, sei lá.

Pela primeira vez, tive a impressão de que ela deixava de emanar a peculiar vibração de alegria. Afundou os olhos em seu milk-shake de morango e sorveu um gole generoso pelo canudo.

— Nossa, que coisa gostosa — disse. Em seguida, ofereceu-me a taça. — Tome, experimente um pouquinho.

Bebi um golinho e quase vomitei. O milk-shake de Lúcia tinha sabor de enxofre.

 ***

Era uma noite de inverno especialmente fria, mas eu encarava as gotas mornas do chuveiro com valentia, motivado pela esperança de que, naquela ocasião, eu me daria bem com Lúcia. Ensaboei com atenção redobrada as genitálias, os sovacos e qualquer parte do corpo que pudesse repelir alguém pelo mau odor.

Tive a impressão de que, num ímpeto de ansiedade, acabara exagerando no creme rinse, pois senti o cabelo extremamente empapado. Eu tentaria consertar isso, se minha mãe já não estivesse havia meia hora batendo na porta, desesperada, anunciando que necessitava urgentemente ir aos pés.

Saí do banheiro com as partes íntimas cobertas pela toalha e fui direto ao quarto. Porra, se continuasse enrolando, corria o risco de me atrasar. Escolhi um disco do George McCrae e pus a rodar na agulha do meu novíssimo 3 em 1. Quando ele mal terminou de cantar pela primeira vez woman, take me in your arms, rock your baby, eu já havia enxugado todo o corpo.

Liguei o secador de cabelos diante do espelho, a fim de amenizar aquela massa de fios ensebados pelo creme. Enquanto penteava, olhei de relance para o reflexo do cartaz de O exorcista dependurado na parede: Linda Blair endemoniada, com a pele do rosto repleta de chagas feito a casca de uma fruta apodrecida.

Vade retro, Satanás! — brinquei, simulando uma voz grave.

Nesse instante, pensei no tal cara que Lúcia mencionara na lancheria. Johnny, El Diablo. “O melhor dançarino de todos”… Devia ser o rei das gatinhas também. Enquanto punha as cuecas, imaginei o sujeito vestindo uma boca-de-sino preta e uma camisa florida aberta na altura do peito, com um pingente de símbolo estranho pendurado ao pescoço.

Quando terminava de pôr a roupa, meu pai abriu a porta e enfiou a cabeça pela abertura.

— Vai cair na farra de novo? — perguntou, em tom repreensivo.

Em condições normais, simplesmente ignoraria a charadinha. Nesta ocasião, entretanto, eu precisaria do carango do velho emprestado.

— Posso usar a fusqueta hoje? — pedi.

O coroa era chato, mas tinha coração mole.

— É por uma boa causa?

— Do jeito que o diabo gosta.

 ***

Encontrei Lúcia defronte à célebre Disco Inferno. Trajava um macacão vermelho-magma e seus cabelos dividiam-se em duas longas tranças. Estava linda!

— Já sei, estou linda — disse ela, antes que eu tivesse tempo de mover os lábios.

Assenti com a cabeça.

— Então, vamos arrasar na pista? — prosseguiu.

Demos os braços e caminhamos até a discoteca. A primeira impressão que nos passava era a de que sua fachada poderia ser avistada por um astronauta da Lua. Luzes de neon em tons alaranjados envolviam as paredes em volta da porta, simulando as chamas das profundezas demoníacas. Na parte superior, o nome cintilava em diversos matizes, acompanhado de uma figura clichê do Diabo que costumávamos ver nos desenhos animados. Tudo bem que as boates da época se demonstravam exóticas, mas aquela definitivamente se destacava de suas correlatas. Parecia um legítimo inferninho, no sentido de antro de luxúria e prazeres mundanos. Ou, pelo menos, era a imagem que tentava passar.

A fila era imensa, e, por um momento, senti-me tentado a desistir da ideia, mas Lúcia surpreendeu-me ao afirmar que nossos nomes se encontravam na lista dos vips

— Agilizei uns contatos — disse, antecipando-se à minha pergunta. — Somos very important people, Miguel!

Não sabia exatamente por que, mas àquela altura eu já me sentia desconfortável por ter aceitado o convite de conhecer o lugar. De toda forma, ainda tinha esperança de me dar bem com Lúcia ao final da noite e decidi não falar nada a respeito.

O porteiro usava uma cartola e um terno antigos, parecendo um cavalheiro saído direto do século XIX, com o detalhe de que seu bigodinho e cavanhaque finos lhe acrescentavam ares grotescamente diabólicos. Ao lado dele, uma pequena escultura de Cérbero, o cão de guarda do Inferno, adicionava a pitada que faltava àquele local pitoresco.

Lúcia mencionou nossos nomes. Após um breve confere na lista, ele alçou a corda de isolamento e estendeu o braço, permitindo nossas passagens.

— Bem-vindos ao Hades! — exclamou. — Divirtam-se.

 ***

Como o lugar ainda estava relativamente vazio, arranjamos uma mesa próxima à pista de dança. Consistia numa espécie de tablado feito de placas de acrílico que piscavam alternadamente todas as cores do arco-íris. O disck-jockey aguardava a chegada de mais pessoas para disparar as músicas dançantes. Consequentemente, não havia ninguém sacudindo os ossos no saguão. Por um bom tempo, rolariam apenas as baladas lentas.

— Mal chegamos e já ameeeei essa disco — declarou Lúcia, enquanto admirava a decoração do ambiente: papéis laminados revestindo as paredes e canhões de iluminação fornecendo um emaranhado de feixes, tudo da cor vermelha.

— Eu admito que estou curioso pra ver esse tal de Johnny, El Diablo — respondi.

Fomos interrompidos por uma das garçonetes vestidas de diabinhas. Chifrinhos, rabinhos, tridentes colados em diagonal nas costas… essas coisas. Lúcia percorreu o cardápio na seção dos drinques e imediatamente pediu um hellhound. Dei-me por satisfeito com uma cerveja. A diabinha anotou e partiu balançando a cauda.

— Você parece mais atraído do que eu pela ideia de conhecer esse cara — sorriu Lúcia, maliciosamente.

— Tá me chamando de gay?

— Nãããooo. Eu só tô querendo dizer que talvez seja inveja, ou ciúme bobo de macho alfa.

— Ah, não tenho como sentir ciúme de quem dança melhor do que eu. Fosse por isso, eu invejaria o resto da humanidade.

Lúcia gargalhou:

— Bobo!

Quando a diabinha retornou trazendo nossas bebidas, a discoteca já estava razoavelmente lotada. Quatro ou cinco casais requebravam a cintura ao som de Yvonne Elliman: If I can’t have you I don’t want nobody, baby. Lúcia começava a se agitar na cadeira. Fitou-me com um olhar de súplica de alguém que não aguentava mais ficar quieta. Coincidentemente, a voz de Tina Charles surgiu para falar por mim: I love to love, but my baby just love to dance.

— Esse já é o segundo disco mais vendido do ano, sabia? — improvisei, buscando uma escapatória. — Perde apenas pra Roberto Carlos.

Lúcia brochou o sorriso e apoiou o queixo na mão, enquanto observava a pista de dança.

Nesse momento, para a minha felicidade e alívio, fui salvo pelo anunciante:

— Senhoras e senhores, diabinhas e diabinhos, pecadoras e pecadores em busca do prazer, chegou a hora de darem as boas-vindas ao nosso mestre de cerimônias. Com vocês, o inigualável, o incomparável, o melhor dançarino de todos: Joooohny, El Diabloooo!

Na sequência, a algazarra generalizada quase abafou a música de acompanhamento para a estrela da noite. Sylvester e seu contagiante falsete bramindo you make me feel mighty real. De arremate, a névoa artificial impregnou todo o recinto, dando a impressão de que receberíamos o verdadeiro Lorde das Trevas.

Não podia negar que era um espetáculo pomposo.

Os casais de dançarinos desceram do tablado e formaram uma espécie de cerca humana ao redor da pista. Numa das extremidades, abriram um corredor até uma porta camuflada pelos papeis laminados na parede. Quando foi aberta, pudemos ver uma silhueta projetando-se em meio às brechas deixadas pela névoa artificial.

Era ele!

 ***

Johnny, El Diablo avançou pelo corredor com um gingado característico no andar. Bateu palmas esparsas que levaram os presentes ao delírio. Uma garota atravessou seu caminho e sussurrou algo em seu ouvido. Provavelmente pediu um beijo. Johnny atendeu ao desejo e ela precisou ser amparada pelos braços de um punhado de clientes, antes que acabasse por se estatelar no chão.

Ele subiu ao tablado em passos de dança ainda tímidos, como um aquecimento para o show que daria a seguir. Duas ou três garotas mais atrevidas também invadiram a pista e se colocaram ao lado do dançarino, repetindo os movimentos ordenados dos braços, numa coreografia improvisada, porém impecavelmente sincronizada. Um pé para a frente, depois para trás, e outros clientes se juntaram ao bailado. Em questão de segundos, eram umas vinte pessoas sobre o piso de acrílico, dando voltas em torno do próprio eixo, batendo as palmas das mãos, movendo-se para a esquerda e para a direita, apontando o dedo indicador para o teto e para o chão, andando de marcha a ré, além de outros passos complexos que obedeciam o ritmo da música, todos liderados com segurança e imponência por Johnny, El Diablo.

Na sequência, ao início da próxima canção, como numa comunicação telepática, todos se retiraram da pista, a fim de dar espaço para que o mestre de cerimônias da Disco Inferno pudesse exibir suas habilidades performáticas livremente. Até então, eu não havia reparado, mas El Diablo era mais ou menos do jeito que eu vislumbrara: camisa de seda prateada e calça boca-de-sino escura, que finalizava num par de sapatos com salto de plataforma. Nada que se destacasse da moda à época. A diferença residia em suas peculiaridades físicas. Olhos de um vermelho reluzente, perceptível mesmo de onde observávamos, a uns bons metros de distância. Não cheguei a olhar para Lúcia, mas supunha que ela devia estar encantada por eles. O cabelo levemente grisalho dava a impressão de ter sido salpicado com cinzas de vulcão.

Assistindo à sua apresentação isolada, tornava-se compreensível por que o cara ostentava a fama de melhor dançarino de todos. A coreografia solitária de Johnny consistia em gestos corporais que remetiam a John Wayne repousando as mãos na cintura em seus filmes de bangue-bangue, passando por movimentos robóticos dos membros superiores, requebrados insinuantes da pélvis no melhor estilo Elvis Presley, um espacate digno de lutadores de kung fu, e finalizava com um passo complexo de joelhos dobrados peculiar à dança dos cossacos. Era como se todas as culturas do mundo se manifestassem numa única coreografia.

Ao final, sob efusivos aplausos, Johnny, El Diablo curvou o tronco em sinal de agradecimento e, estranhamente, veio em direção à nossa mesa.

 ***

— Muito prazer, sou o Governante do Báratro — apresentou-se, sentando à mesa sem pedir permissão.

— Os demônios não precisam ser convidados pra chegar assim no território dos outros? — interpelei, em reação jocosa e automática.

Johnny parecia ter a resposta já pronta em sua língua de serpente.

— Suponho que esse seja um problema dos vampiros.

— Não dê bola pra ele — interveio Lúcia, estendendo-lhe a mão para ser beijada. — Muito prazer, eu sou…

— Eu já sei o seu nome.

Quando sorriu com o canto dos lábios, abrindo uma leve fenda entre eles, e assim, sem falar, tive a sensação de ouvir algo bastante estranho. Era como se um misto de sons de lamúria e o crepitar de labaredas exalassem do interior daquele sujeito. Eu devia ter exagerado na cerveja. Não mais do que Lúcia em sua terceira dose de hellhound, entretanto.

— Ele não tem muita afinidade com a dança — disse ela ao Diablo, referindo-se a mim. — Então sugeri que tomasse algumas lições com você, afinal, é o “melhor de todos”.

— Qual é, Lúcia! — falei, com a intenção de deixar clara minha contrariedade com sua observação.

Johnny apanhou o copo da mesa sem a menor cerimônia e deu um gole no hellhound, sempre mantendo os olhos nos dela.

— Não é assim tão simples, querida. Pra dançar comigo, é necessário pagar um preço. Um preço bem alto.

Balancei a cabeça em tom de incredulidade com a canastrice do papo.

Lúcia apanhou de volta o seu drinque, sempre mantendo seus olhos nos dele.

— Vender a alma? — perguntou.

Cruzei os braços e desviei o rosto para os dançarinos na pista.

— Quanta bobagem! — murmurei.

— Não é bobagem, não, Miguel — respondeu Johnny, de maneira paciente, quase imutável, e eu não fazia ideia de onde ele sabia meu nome. — Sou obrigado a falar a verdade em relação às minhas negociações. É cláusula expressa em todos os contratos.

— Então quer dizer que aquelas pessoas que dançaram com você estão condenadas? — ironizei.

— Pra ser honesto, eles são os meus servos. Demônios menores, encarregados de recrutar almas lá fora. — Ele ainda mantinha seus olhos nos de Lúcia.

— E o que é preciso pra fechar o negócio? — perguntou ela, a essa altura completamente seduzida pelo suposto encanto do dançarino.

— Não é preciso assinar nada. Basta tomar minha mão e dançar comigo na pista.

Lúcia hesitou por um tempo. Johnny, El Diablo acrescentou:

— Serão os momentos mais prazerosos de sua vida.

Levantei impaciente, na vã tentativa de me fazer ser notado:

— Chega! Vou ao banheiro aliviar a tensão e já volto.

Virei as costas e parti, com a certeza de que os dois não deram a menor bola para mim.

 ***

Retornei do banheiro mais calmo e até meio alegre ao ouvir The Trammps entoando o refrão burn, baby, burn, de sua Disco Inferno. Agora, eu sabia de onde haviam retirado o nome daquela discoteca satânica. A mesa estava vazia. Certifiquei-me de que Lúcia aceitara o convite para dançar com Johnny, El Diablo ao avistá-los corpo a corpo na pista.

Abandonei a ilusão de que me daria bem naquela noite e afundei minha decepção no copo de hellhound que ela deixara pela metade. Em realidade, sentia-me contente por Lúcia. Pelo menos, estava se divertindo. Nas mãos de um pilantra, por certo, mas que dançava bem melhor do que eu. Quando o disc-jockey pôs a tocar Born to be alive, do Patrick Hernandez, a multidão explodiu em vibração. Então, algo muito estranho aconteceu a partir daí, e eu não saberia dizer se o drinque que recém tomara havia me distorcido a razão com apenas um gole.

Tive a impressão de que chamas envolviam o corpo de Lúcia, de Johnny e de todas as pessoas na pista de dança. Flamas discretas, porém perceptíveis. Esfreguei os olhos para enxergar melhor e desenganar a mente desse panorama surreal. Mas as pessoas continuavam ardendo. E, o que era ainda mais curioso, elas pareciam não se importar: balançavam seus membros e chacoalhavam os quadris, animadas e imersas numa espécie de êxtase. Das duas, uma: ou o hellhound de Lúcia tinha sido batizado com alguma droga alucinógena das mais poderosas, ou eu fora privado de minhas faculdades mentais de uma hora para outra.

Chamei uma das garçonetes diabinhas a fim de perguntar o que se passava, e tamanha foi minha surpresa ao perceber que o rosto da menina, da criatura, do que quer que fosse aquilo diante de mim, assemelhava-se ao de uma múmia embalsamada por três ou quatro milênios. Mas que merda era aquela?

Levantei-me e recuei alguns passos, horrorizado com a figura bestial. Tornei a mirar a pista, no intuito de chamar Lúcia e darmos o fora daquele lugar. Entre os dançarinos flamejantes, cada vez mais animados, percebi que ela e Johnny se beijavam, e as chamas que envolviam os dois se mesclavam numa única labareda escarlate. Em seguida, eles viraram seus rostos para mim, e todos os dançarinos na pista, e todas as pessoas do local, clientes e empregados da Disco Inferno, interromperam suas atividades e me encararam diabolicamente, impregnando o ambiente com gargalhadas demoníacas que atingiam meus ouvidos em uníssono.

Tapei as orelhas com as mãos e, afligido por uma tremenda dor de cabeça, corri para fora do estabelecimento, sem me importar em esbarrar em qualquer um que ousasse se atravessar no meu caminho.

***

 Demorei alguns dias para tomar coragem e voltar ao lugar. Perdera totalmente o contato com Lúcia. Necessitava urgente de notícias dela. Que fim teria levado? Estaria bem? Fora sequestrada, violentada ou algo pior? Sacrificada em alguma espécie de ritual satânico por aquela seita de malucos da discoteca?

A construção que abrigava o estabelecimento parecia abandonada havia décadas. Nenhuma luz de neon. Nenhum letreiro ostentando Disco Inferno acima da porta. Nenhum sinal de que, até pouco antes, ali existia uma boate cultuada e famosa em seu curto período de atividade nesta capital com ares de província.

Quarenta anos se passaram desde então, e eu nunca soube que diabos aconteceu com Lúcia…


Confira uma análise detalhada desta história em forma de podcast feita pela IA:


Imagem da capa da antologia "Fantasia Pulp!", mostrando quatro ilustrações coloridas de quadrinhos antigos.

Este conto foi publicado originalmente na antologia “Fantasia Pulp!”, lançada pelo selo editorial independente Ficções Pulp! A obra está disponível por um preço simbólico na Amazon, caso desejem conferir.

“Burn, baby, burn!” (Diego Quadros) – não gostei da finalização, mas é impossível negar que o conto consegue prender a atenção.

— Henggo

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