Sônia Braga Pelada em “A Dama do Lotação”

por Diego Quadros
45 minutos de leitura

And it’s so good to live in peace and

Sunday, Monday, years and I agree

While my eyes go looking for

Flying saucers in the sky

Caetano Veloso, “London London” 

 

A ESTRADA

Eu devo ter dirigido por cerca de dez quilômetros naquela estrada de chão batido, aos solavancos e sob desvios bruscos na intenção de evitar os buracos profundos, quando as vozes em minha cabeça finalmente ordenaram que parasse o carro. O alívio foi grande. Eu havia perdido tanto sangue pelo caminho que estava prestes a desmaiar sobre o volante.

Levei a mão às costas para verificar se ele ainda escorria pelo maldito furo de bala. Parecia coagulado e estancado. Já não era sem tempo. De qualquer forma, tive certeza de que morreria em breve. Duas, três horas, talvez? Não importava. Estava ali para cumprir a missão que as vozes impregnaram em meu cérebro, e não aguentava mais abrigar na cabeça pensamentos que não fossem apenas os meus. No banco de trás, os cadáveres permaneciam na mesma posição. E ainda havia outro no porta-malas.

Desliguei o motor e saí do meu bom e fiel Maverick com dificuldades.  Encostei no capô e puxei um Marlboro porque, porra, depois de toda a situação que me levara àquela estrada perdida no meio do nada, eu precisava mesmo fumar um crivo. A noite, por si só, já estava bastante escura pela ausência da Lua, e as matas fechadas que ladeavam a estrada reforçavam o breu. A única iluminação disponível era dos faróis do automóvel. Foi graças a ela que pude flagrar a fumaça do cigarro escapando pelo buraco em minhas costas. Eu sabia, o tiro havia perfurado meu pulmão esquerdo. Agora tinha certeza de que morreria em uns poucos minutos. Necessitava agir rápido, antes que as vozes retornassem.

Atirei o cigarro longe e comecei a retirar os cadáveres de dentro do Maverick. Eram levinhos — além de pequenos, estavam carbonizados. Catei primeiro os dois do banco de trás e deixei-os estendidos na margem da estrada da melhor maneira que pude, visto que já que se encontravam duros. Então, abri o porta-malas e fiz o mesmo com o corpo restante. Este era ainda menor do que os outros. Seria uma criança? Não, eu não queria saber. Não passaria meus últimos minutos lamentando por fatos os quais já não era capaz de alterar. Estava ali para satisfazer o desejo das vozes e me livrar da submissão. Ao depositar o cadáver que faltava no chão, eu havia acabado de cumprir a tarefa. O que viria a seguir?

Sentei-me ao lado deles e acendi outro Marlboro. Quem diria que Horácio, detetive do oculto, terminaria seus dias assim? Encolhido na relva, ao lado de três cadáveres queimados, expelindo fumaça por um buraco nas costas e…

Súbito, ouvi um farfalhar da vegetação atrás de mim. Ergui-me de um salto e virei-me em direção à origem do ruído. A escuridão não permitia que enxergasse em detalhes, mas consegui perceber que uma silhueta brotava da mata. Tinha os contornos de um homem, eu supunha, porém de menor estatura. Ou melhor, parecia moldado na mesma forma que havia gerado aquelas criaturas carbonizadas aos meus pés. Sem dúvida, eram da mesma espécie. A cabeça era desproporcional em relação ao corpo, mas possuía dois braços e duas pernas. Não consegui identificar a tonalidade da pele. Algo entre o amarelo e o laranja, talvez? De toda sorte, tratava-se de uma criatura humanoide. Porra, não era que os tais marcianos realmente existiam?

Em seguida, escutei o ronco do motor de oito cilindros do Maverick. Dera a partida sozinho. Também pude ouvir um intenso ruído de estática emanando do rádio. Os faróis piscavam nervosamente e a antena oscilava ao sabor de um vento repentino. 

Quando me virei novamente para o marciano, qual foi o meu susto ao perceber que já não era mais um, e sim vários deles ao redor de mim, ao redor dos cadáveres, encarando-me com aqueles olhos enormes de abelha. Escuros, sombrios, melancólicos.

E pensar que, quando tudo isso começou, minha vontade era apenas assistir a Sônia Braga pelada…



A DAMA DO LOTAÇÃO

 Com um bordão desses, estrategicamente divulgado pela produção do filme, era impossível que A dama do lotação não gerasse comoção nacional. “Sônia Braga pelada”. Como ninguém nunca vira! Mal fora lançado e já era um estouro de bilheteria. 

Assim, naquela monótona tarde de sábado, decidi conferir se o matagal entre as coxas da atriz realmente aparecia na telona, mesmo correndo o risco de sentir uma vontade irresistível de socar uma bronha no banheiro do cinema. Investigar o oculto é um ofício que não nos dá muita chance de investir numa vida romântica, ou porque a pretendente não acredita em paranormalidade e decide fugir de um homem maluco, ou porque corre o risco de se tornar alvo de todo o tipo de entidade maléfica impulsionada pelo desejo de vingança.

Nunca fui de comer pipoca e menos ainda de tomar refrigerante, então me contentei em acender um filtro vermelho, enquanto os créditos iniciais surgiam na tela. A sala estava lotada, e eu tive pena de fumar entre uma jovem aparentemente grávida e uma velha com bochechas de uva-passa, mas, como não reclamaram, eu fiquei na minha e segui dando uns tragos até que a Sônia Braga entrasse em cena. O macharedo foi ao delírio quando isto aconteceu. O filme nem bem havia começado e um coro de vozes roucas e entusiasmadas preencheu o ambiente com suas reivindicações: “Mostra! Mostra! Mostra!” As próprias mulheres acharam graça e riram da situação.

Não sei quanto tempo passou, mas lembro que a Sônia Braga ainda não se mostrara pelada no filme, quando dois vultos se aproximaram de mim, entre pisões nos pés dos espectadores e suas consequentes reclamações. Estavam fardados, com capacetes sobre as cabeças e metralhadores em punho. Milicos.

— O senhor é o seu Horácio? — perguntou o que viera na dianteira.

— Sim — respondi.

— Detetive do oculto?

— O próprio.

— Temos ordens de escoltar o senhor até a rua.

— Não entendo. Amigo, eu só estou aqui pra ver a Sônia Bra…

— Por favor, apenas venha com a gente.

Havia um tom de constrangimento por trás da ordem daquele recruta que mais me deu pena do que me intimidou. Resolvi não fazer caso. Levantei-me da poltrona e deixei que abrissem caminho entre o manguezal de pernas de toda aquela gente cinéfila. Conduziram-me até a entrada do cinema, onde um agente à paisana caminhava de um lado ao outro com as mãos no bolso.

Eu não gostava de militares, nem antes, nem depois de 64, e não apenas por conta de meus problemas com autoritarismo, característica inerente à minha personalidade. Não bastasse viverem na minha cola por conta da natureza invulgar de meu trabalho, sempre me obrigavam a ajudá-los em casos que estavam além de seu poder e de sua compreensão. Do contrário, vinham as ameaças de cassação da licença, investigação, prisão e toda a ladainha que utilizavam para intimidar quem não jogasse sob suas regras.

— Senhor Horácio? — perguntou o militar à paisana, sem tirar as mãos do bolso. Trazia um palito no canto da boca e ostentava um óculos aviador que lhe cobria boa parte do rosto.

— Sim.

— Detetive do oculto?

— Escuta, amigo. Pode cortar essa parte. É óbvio que vocês têm um dossiê com informações de toda a minha vida.

— De fato, temos. Eu sou… bem, pode me chamar de Comandante Aderbal. 

Simpatizei com o sujeito. Não tinha classe alguma. Como eu.

— Em que posso ajudar, Comandante?

— Tivemos um incidente na madrugada passada e necessitamos de seus conhecimentos para sanar algumas dúvidas a respeito do caso.

— Trata-se de matéria referente ao paranormal?

— Na verdade, trata-se de um incêndio.

Um incêndio? Não seria o caso de chamar os bombeiros, sugeri. Ele então afirmou que explicaria em detalhes o caso durante a viagem até o local do ocorrido. Solicitou que eu o acompanhasse na Chevrolet Veraneio discreta estacionada em frente ao cinema, o que neguei prontamente.

— Sinto muito, Comandante. Mas, a menos que eu esteja sob custódia, só ando no meu bom e fiel Ford Maverick.

— Por mim, sem problemas, contanto que possa acompanhar o senhor a fim de relatar os pormenores da situação. Meus homens vão seguir logo atrás.

— Que assim seja.



OS CORPOS CARBONIZADOS

 A casa destruída pelo incêndio era uma espécie de sobrado, localizada numa rua de pouco movimento nos arredores da cidade. Era feita em alvenaria e ainda se mantinha em pé. A julgar pelas condições em que sua fachada se apresentava, no entanto, podia-se imaginar que estava completamente destruída por dentro. O incêndio, certamente, fora dos grandes.

A rua estava isolada por cerca de uns trinta metros, a fim de manter os curiosos afastados, e os vizinhos próximos ao terreno acompanhavam de suas janelas os trabalhos dos bombeiros e da perícia. Alguns militares também circulavam pelo perímetro. 

— O senhor é o tal Horácio? — perguntou o chefe dos bombeiros, enquanto nos recebia em frente ao prédio incendiado.

— Sim.

— Detetive do oculto?

— O próprio — respondi, desconfiando que meu nome já começava a galgar os degraus do reconhecimento.

— É um prazer. Meus filhos vivem acompanhando as reportagens acerca de seus casos nos jornais. — Isso, para mim, era uma novidade.

— O prazer é meu, chefe. Agora, será que pode nos levar até os corpos?

— Então o senhor já sabe dos três demônios? Bem, é por aqui — respondeu, fazendo um gesto para que o seguíssemos.

Enquanto percorríamos o interior do sobrado, notei que aquela não se tratava de uma casa normal. Não havia muitos escombros, restos de mobília, eletrodomésticos e outros artefatos que geralmente encontramos em residências familiares. A julgar pelo que via, era fácil concluir que a casa estava praticamente vazia no momento em que fora consumida pelas chamas. Que diabos de lugar era aquele?

O chefe dos bombeiros nos conduziu até uma passagem que dava para uma espécie de subsolo. Descemos as escadas cautelosamente, evitando escorregar na fuligem impregnada nos degraus. Não se tratava exatamente de um porão, e sim um corredor estreito com algumas portas de metal. Parecia o andar inferior de uma prisão ou algo semelhante. Não era segredo que os militares mantinham alguns centros clandestinos de detenção em diversas cidades do País, e eu imediatamente olhei para o Comandante Aderbal, que reagiu com um encolher de ombros como quem diz que também não sabe de nada.

— Os corpos estavam em três cômodos diferentes — disse o chefe dos bombeiros. — Reunimos todos após os exames da perícia. Estão naquela sala ao fundo.

— Algum indício de como o fogo iniciou? — perguntei.

— Ainda não podemos determinar a causa, mas, a julgar pelos rastros da fuligem, tenho quase certeza de que começou aqui embaixo, no cômodo onde estava um dos corpos.

Finalmente, entramos na peça onde os três cadáveres foram depositados. Estavam completamente carbonizados. A pele resumira-se a uma crosta de fuligem preta, como um animal esquecido sobre uma churrasqueira. Suas formas, porém, mantinham-se relativamente intactas. Tinham pernas e braços como uma pessoa normal, mas, de forma alguma, tratavam-se de seres humanos. A cabeça era bem maior do que a de um crânio médio. Os olhos havia sido consumidos pelo calor, mas, pelo tamanho das cavidades, podia-se inferir de que eram enormes. Os membros superiores também eram desproporcionais em relação aos inferiores: os braços eram bem menores do que as pernas.

— O senhor acha mesmo que são demônios? — perguntou o chefe dos bombeiros.

— Não tenho a menor ideia — respondi.

— Pensei que o senhor entendia dessas coisas — interveio o Comandante Aderbal.

— Já vi muita coisa nesta vida, Comandante. Criaturas que vocês nem são capazes de imaginar. Mas nunca cruzei com seres desse tipo. Se fossem entidades sobrenaturais, certamente não morreriam queimadas num incêndio.

— Eu vou mandar despachar esses corpos pro necrotério. Assim que tiver os resultados da autópsia, posso enviar a você. Ou posso lhe dar acesso ao trabalho do legista, se preferir.

— Ótimo. Enquanto isso, o senhor poderia investigar também o que acontecia aqui nesta casa e quem é o responsável por ela. Tenho certeza de que o presidente Geisel não gostaria que viesse à tona um escândalo de um centro clandestino de detenção mantido por vocês em seus últimos meses de governo, mas é fundamental ao esclarecimento dos fatos que eu tenha o máximo de informações preliminares possível.

— Eu… mantenho você informado.

— É bom, mesmo, caso queiram desvendar o caso — concluí, já de costas para o Comandante e o chefe dos bombeiros, apressado em abandonar aquele local.


OS RECORTES DE JORNAL

 Eu imaginara que passaria a noite no escritório tendo sonhos eróticos com a Sônia Braga, e não vasculhando a estante em busca de livros que me trouxessem alguma luz a respeito da origem daquelas criaturas encontradas na casa incendiada. Puxei alguns volumes sobre demonologia, vampirismo, licantropia, lendas populares, revirei as páginas, analisei alguns artigos, mas nada indicava pistas das circunstâncias inerentes ao caso. 

De uma gaveta, retirei meu velho caderno de anotações acerca dos trabalhos anteriores. Tinha esperança de que ali haveria alguma frase, uma palavra qualquer, que me despertasse certa linha de raciocínio. Comecei pelos mais antigos, a fim de seguir a cronologia: eram muitos, e eu passaria a noite mergulhado em sua leitura, mas isto nunca fora problema para um detetive que sofre de privação de sono e não tinha nenhum outro caso para resolver à época.

1953, sereias no litoral do Rio de Janeiro. Eu era bem jovem, sem experiência no ramo. Quase morri afogado — e também devorado — por aquelas jovens belas e (literalmente) encantadoras, que me deixaram diversas cicatrizes como lembranças vivas de que, sim, elas realmente existem.

1962, o morto-vivo de Ituiutaba. Relatos de um cadáver rejeitado pela terra e que assombrava os moradores acabaram por me levar à cidadezinha no limite entre Minas Gerais e Goiás. Chamavam-no de corpo-seco pelos arredores, e diziam que havia sido um fulano muito mal quando vivo. Acabou esquartejado pelo meu serrote e reduzido a cinzas numa fogueira de São João.

1973, os índios-morcegos do Araguaia. Outro exemplo de como fui forçado a colaborar com o regime, ao ser convocado para investigar o caso de nativos alados que atacavam a machadadas os soldados destacados para perseguir os guerrilheiros que operavam na região. Quando finalmente descobri a caverna onde se escondiam, entreguei sua localização aos militares. Ao que me parece, eles adestraram as criaturas para combater os inimigos comunistas.

De fato, atravessei horas rememorando todos os casos investigados por mim ao longo de um quarto de século, mas nada encontrei que pudesse me fornecer uma pista sobre a origem dos humanoides carbonizados. Estava prestes a desistir e tomar uma garrafa de conhaque para atrair o sono, quando lembrei do meu outro caderno, o de recortes de jornais com reportagens de ocorrências misteriosas em diversas partes do mundo nas últimas décadas. Eu sabia que já vira algo parecido com aqueles seres antes, só não tinha certeza de onde.

Nas primeiras páginas, havia uma notícia reveladora. 1947, Roswell, Novo México, Estados Unidos. Um fazendeiro localizara destroços de um suposto disco voador. O Exército americano negara, afirmando se tratar de um balão meteorológico. Rumores da população local falavam em corpos de seres extraterrestres recolhidos pelos militares em segredo. Num dos recortes, uma espécie de retrato falado das criaturas. E, sim, eram muito semelhantes aos meus cadáveres.

Segui vasculhando as páginas.

A abdução dos Hill, 1961. Um casal, Betty e Barney Hill, teria sido abordado por uma nave alienígena numa estrada em New Hampshire, Estados Unidos. A mulher relatou que, dias depois, começara a sonhar com o interior da espaçonave, tripulada por homenzinhos de cerca de um metro e meio de altura, calvos e de testas largas e bulbosas. Novamente, uma descrição praticamente idêntica a das minhas criaturas.

Era possível que, de fato, as histórias fossem pura balela, fruto da imaginação ou de uma espécie de histeria coletiva. Porém, se tem uma coisa que aprendi em todos esses anos investigando o sobrenatural, é que quanto mais as fontes oficiais negam os fatos, maiores são as chances de que eles representem a verdade — ou, pelo menos, parte dela.

E, em se tratando de supostas invasões alienígenas e teorias da conspiração, eu sabia exatamente quem procurar.

Mas passaria antes no necrotério.


O NECROTÉRIO

 — Boa noite, sou o Horácio — falei à sentinela que guardava a sala de autópsia.

— O detetive do oculto? — perguntou ele.

— O próprio. O senhor me conhece?

— Não, mas o Comandante já tinha me falado que era capaz de o senhor aparecer. Pode passar.

Empurrei a porta e vi os três corpos estendidos sobre as mesas. Ao redor de um deles, um par de médicos legistas dividia suas atenções entre examinar as vísceras do “paciente” e conversar sobre A dama do lotação.

— Será verdade que a Sônia Braga aparece pelada mesmo? — cogitou o mais novo.

— Rapaz, se essa informação procede, eu não perco esse filme por nada — respondeu o mais velho.

— Porra, aquela mulher é uma deusa! — acrescentou o mais novo.

— Puta mulherão! — reforçou o mais velho.

— Com licença, senhores. Eu sou… — interrompi.

— Horácio, o detetive do oculto — finalizou o mais velho.

— O próprio. Senhores, não consigo entender como vocês têm mais interesse pelas partes íntimas da atriz do que por essas criaturas não humanas debaixo de seus narizes.

Os dois entreolharam-se e deram de ombros.

— Bem — continuei —, alguém pode me explicar o que, exatamente, nós temos aqui?

— Nada muito elucidativo, infelizmente — disse o mais velho.

— É, infelizmente — replicou o mais novo.

Olhei para a barriga do cadáver, aberta de cima a baixo.

— Me parece que os órgãos internos não foram tão danificados pelo incêndio — falei.

— Não foram mesmo — respondeu o mais velho.

— Não mesmo — repetiu o mais novo.

— E então? — insisti.

— E então que esses órgãos internos, ou seja lá o que forem, definitivamente não são de nenhuma criatura já vista na Terra. Isso podemos atestar — disse o mais velho.

— Criaturas do espaço, talvez?

— Se o senhor acredita nessa baboseira — concluiu o mais velho, antes de voltar a examinar o cadáver.

— É, se o senhor acredita… — ecoou o mais novo.

— Entendi. Obrigado, senhores. Vocês estão prestando um grande serviço à Nação… eu acho.

O próximo destino seria o covil de meu informante.


O INFORMANTE

 Eu estava diante de uma porta de aço reforçado que lembrava a entrada de um bunker construído para o caso de um ataque nuclear. Porra, era uma paranoia americana demais para o meu gosto. Em se tratando de meu contato, porém, era uma paranoia justificável. Talvez fosse o maior teórico da conspiração do País, quiçá do continente. E inimigos, todos sabemos, jorram aos borbotões no caminho desses conspiracionistas. Mas o sujeito era bom. Do contrário, já teria sido encontrado pelos militares e sumariamente executado.

Bati naquela muralha quase impenetrável e aguardei pacientemente. Sabia que ele só a abriria depois que se certificasse, de algum modo, tratar-se de alguém em quem poderia confiar. Passaram-se uns minutos até que a porta fosse finalmente acionada por um circuito eletrônico, deixando uma fresta por onde só se podia entrar uma pessoa por vez.

— Vejam só! — disse ele, perdido em algum canto da bagunça que predominava no esconderijo. — O detetive do oculto.

— O próprio — respondi.

Era uma sala que continha mais quinquilharias do que um antiquário, um mercado de pulgas e um ferro-velho — juntos. Mapas e painéis de cortiça com fotografias e reportagens cobriam quase todas as paredes. Os territórios da União Soviética, do Império Austro-Húngaro, do Otomano, retratos de líderes mundiais, caçadores de nazistas, terroristas, celebridades de Hollywood, manchetes sobre a Guerra do Vietnã, operações da CIA, do Mossad e da KGB, era possível aprender muita coisa de política, história, geografia e cultura popular ao se analisar aquele rico material. Espalhados pelo chão, diversos circuitos e aparelhos eletrônicos, além de dispositivos estranhos ao meu conhecimento, mas que eu sabia se tratarem de geringonças que cairiam bem nas mãos de agentes secretos ao estilo “Bond, James Bond.”

— Seja novamente bem-vindo ao meu humilde couto — disse o informante, saindo de um buraco no chão escondido por uma pilha de uniformes da polícia, do exército, de companhias aéreas e de inúmeros outros disfarces. — A que devo a honra desta vez?

— São esses milicos de novo. Me meteram noutra roubada a qual não faço a menor ideia de como resolver.

— Nada que uma bala de prata e uma estaca de madeira ajudem? — zombou.

— Não, agora é uma situação inédita, ao que tudo indica. Pode soar estranho, mas não estou lidando com criaturas das profundezas. Pelo contrário. Agora, acho que elas vieram do… céu?

O informante ergueu uma das sobrancelhas, genuinamente interessado. Pôs a mão no queixo, alisou a barba rala.

— Hmm. Fale mais a respeito.

Então, fiz um breve relato com os detalhes mais importantes da investigação, de ida ao cinema para ver Sônia Braga à casa onde os seres anormais queimaram vivos, e comentei sobre as únicas pistas que encontrara nos artigos de jornal, que anunciavam relatos de discos voadores e seres extraterrestres nos Estados Unidos, e de como não achava plausível a possibilidade de vida alienígena, ainda que já houvesse encontrado todo tipo de criatura sobrenatural ao longo da minha carreira. 

— São histórias não apenas plausíveis, como absolutamente reais — disse o informante. — E vou além. Temos ocorrências ainda mais conclusivas aqui mesmo, no Brasil.

— Ah, corta essa. Que interesse os marcianos teriam no Brasil? Se fosse nos Estados Unidos, é até compreensível, quem sabe na União Soviética também. Mas, aqui? Sem chance.

— Corta essa digo eu, Horácio! Você, melhor do que ninguém, sabe que criaturas paranormais não respeitam nacionalidades e convenções geopolíticas. Por que seria diferente com os extraterrenos? E, não, não são marcianos, porque já foi comprovado que não existe vida em Marte.

— Pois eu nunca ouvi falar de nada parecido por estas bandas.

— Pois saiba que existem casos bem conhecidos do público, sim. Às vezes, você parece mais perdido do que os seres de outros mundos. Tome o caso da Ilha da Trindade, em 1958, por exemplo. Um fotógrafo registrou um disco voador sobrevoando próximo à ilha, enquanto acompanhava um navio da Marinha em missão de pesquisa oceanográfica. Inclusive, alguns membros da tripulação teriam avistado o objeto também. Claro, não demorou muito para tentarem desacreditar o fotógrafo, alegando que as imagens se tratavam de montagens, como sempre acontece em casos assim, quando a verdade está lá fora, mas o governo não quer que a gente saiba.

— Olha, desculpa, eu quero acreditar, mas convenhamos que a hipótese de montagem é, de longe, a mais provável.

— Mas então vamos retroceder e avançar um pouco no tempo, para o Caso Vilas-Boas.

— Não entendo. Retroceder e avançar?

— É que este caso ocorreu alguns meses antes do caso da Ilha da Trindade, em outubro de 1957, mas só veio a público em 1965, quando foi publicado pela revista Flying Saucer Review. Aliás, trata-se do primeiro caso de abdução publicado na história, sabia disso?

— Não fazia nem ideia de que marcianos também sequestravam.

— Alienígenas, não marcianos. Talvez até sejam homenzinhos verdes, como mostram nas revistas em quadrinhos e nos filmes americanos, mas definitivamente não vêm de nosso vizinho.

— Mas, afinal, de que se trata o Caso Villa-Lobos?

— Vilas-Boas. Bem, tudo aconteceu numa cidadezinha de Minas Gerais com um lavrador, o Antônio Vilas-Boas em questão. Numa madrugada de outubro, ele arava a terra com o trator quando foi surpreendido por uma luz vermelha que pairava a cerca de uns 50 metros de sua cabeça, antes de pousar a pouca distância de seu trator. Quando a porta da espaçonave abriu, Antônio tentou fugir pra longe, mas terminou capturado por seres humanoides trajados dos pés à cabeça e conduzido à força para o interior da nave. Foi despido contra a vontade, teve sangue retirado por uma espécie de tubo de sucção e obrigado a fazer sexo com uma fêmea humanoide, antes de ser levado para fora do veículo. Claro, estou narrando de forma bem resumida, mas o caso é tido por ufólogos de todo o mundo como um dos mais detalhados do tipo.

— Sexo com uma marciana? Pô, aí já é demais! Não tenho como engolir essa baboseira. Nem nos filmes isso…

— Você mesmo já comeu criaturas não humanas, Horácio.

— Sim, mas tratavam-se de demônias, vampiras, seres paranormais. Não mulherzinhas verdes e quase anãs.

— Bom, mas a história não termina aí. Há poucas semanas, um ex-agente da CIA, nascido na Iugoslávia, inventou toda uma história tentando relacionar este evento com Vilas-Boas à Operação Miragem. Alegou que borrifaram drogas alucinógenas em Antônio e o induziram a pensar que estivesse sendo abduzido por alienígenas. Segundo ele, o disco voador, na verdade, não passava de um helicóptero disfarçado e a fêmea humanoide era uma puta asiática contratada para copular com o lavrador. Tudo faria parte do projeto de controle mental da agência americana chamado MKULTRA. Quer maior prova de que o caso narrado por Vilas-Boas é autêntico, Horácio? A CIA envolvendo-se para confundir e manipular a sociedade com mais uma história de desinformação.

Bem, neste ponto eu era obrigado a concordar com meu informante paranoico. Quando agências de espionagem e outros órgãos governamentais de atuação obscura se intrometem em ocorrências do tipo, propagando informações contrárias e tentando impô-las como “oficiais”, é porque geralmente as versões originais são verdadeiras.

— E agora, a cereja do bolo — prosseguiu. — A Operação Prato.

— Prato? É o que, uma operação de lavadores de louça?

— Porra, Horácio! Eu tô procurando ajudar, vê se leva o assunto um pouco a sério. Prato é por causa dos flying saucers americanos. 

— Tá bom, tá bom. Desculpa! De que se trata a tal operação?

— Então, sabe o que é o melhor? Essa operação militar é recente, do ano passado pra cá, logo podemos dizer que está acontecendo agora. E não tem CIA envolvida, nem KGB ou seja lá o que for. É uma operação militar brasileira. Envolve a Marinha, o Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica e o Serviço Nacional de Informações. Estão todos acompanhando de perto o que anda ocorrendo no Pará.

Deixei escapar um assobio de surpresa. O que poderia levar duas das três forças armadas do Brasil, e mais os secretas, ao Pará, que não fossem guerrilheiros comunistas? O assunto ficava mais interessante.

— A situação começou no Maranhão pra falar a verdade — disse o informante. — Uma série de avistamentos em diversas cidades, bolas de luzes ou de fogo que disparavam raios contra os moradores. Um caso específico, de três pescadores queimados pelas bolas, causou furor na imprensa local, porque um deles acabou morrendo. Pouco tempo depois, o fenômeno já ficava conhecido pelo nome de chupa-chupa. Sabe por quê? Acredite ou não, em algumas ocorrências as bolas sugavam o sangue das vítimas, disparando tubos coletores lá do alto, do céu mesmo. Sim, alguns moradores foram vampirizados pelas tais bolas de fogo. Do Maranhão, essa “onda” se espalhou pro Pará, com relatos de todos os tipos de agressão, raios que pareciam perfurar não só a carne, como os ossos, e que também causavam paralisias, tremores, choques elétricos, teve de tudo. Lá, chamaram o fenômeno de “a luz do diabo”. Mesmo um delegado viu uma dessas luzes sobre sua casa e tentou atirar contra ela, mas sofreu uma espécie de impedimento inexplicável. Esses relatos ocorreram em abundância entre outubro e dezembro do ano passado, mas eu tenho informações quentes de que os militares ainda estão lá, investigando a situação. Naturalmente, estão falando em histeria coletiva, febre amarela, mentiras e imaginação fértil. Não se poderia esperar outra coisa deles. Mas quer saber uma coisa, Horácio? Se você quiser encontrar resposta para a questão dos seus cadáveres incendiados, eu apostaria todas as minhas fichas em um único palpite: a Aeronáutica.

— Faz sentido. Se os tais discos voadores são veículos que se locomovem no ar, quem mais adequado pra investigar o fenômeno? — respondi, achando-me o detetive mais genial do ramo naquele momento.

— Eu tô dizendo, Horácio, esses caras tem bases secretas por todo o País. Já ouvi falar de um tal Armazém 12, onde eles guardam vestígios de objetos aéreos que não podem identificar, e mesmo boatos sobre espaçonaves completas e até alienígenas – mortos e… vivos.

— Vai ser difícil tirar alguma informação dos figurões da Aeronáutica. Nem sei por onde começar. É capaz de mandarem me prender se eu apertar demais os militares.

— Eu mantenho você atualizado quando souber de algo novo. A propósito, só pra constar, eu já vi esse A dama do lotação.

— Rá, essa é boa. Como pode isso, se você nem sai desse cafofo?

— Bem, eu tenho meus contatos no cinema também. Me conseguiram uma cópia do rolo do filme.

— E a Sônia aparece pelada mesmo?

— Ah, essa é uma informação que não vou revelar — regozijou o filho da puta, antes que eu seguisse meu rumo.


AS VOZES

Naquela noite, eu finalmente tentei dormir no sofá do escritório. Devia estar acordado por umas 72 horas, talvez mais. Joguei o paletó sobre a escrivaninha, desabotoei a camisa como se estivesse prestes a transar com uma dama muito atraente e mergulhei sobre as almofadas como saltasse de um barco no meio do mar sereno. Peguei fácil no sono.

Foi então que começou essa história de pensamentos e vozes estranhas dentro da minha cabeça.

Nunca fui de sonhar enquanto estou apagado. Ou, pelo menos, raramente me lembro dos sonhos — provavelmente pesadelos — após despertar. Talvez seja porque tenho o hábito de dormir embriagado de licor em quase todas as ocasiões. Ou talvez seja um mecanismo de defesa do meu cérebro mesmo, a fim de preservar sua sanidade diante das coisas com as quais me deparo em minha rotina profissional.

O fato é que desta vez eu lembro de cada detalhe das imagens e sons que se materializaram em minha visão onírica. E lembro delas porque se tratavam de como os marcianos vieram de um lugar muito longe para cá, de como sua espaçonave fora surpreendentemente abatida pelas sucatas voadoras de nossa força aérea, de como eles foram capturados e levados ao centro clandestino de detenção da Aeronáutica, depois torturados até que finalmente um deles incendiou, como numa combustão espontânea, e o fogo se alastrou por todo o prédio em que estavam confinados.

Ficou claro, em meu sonho, que eles partiram havia muito tempo de uma galáxia muito distante. Um período maior do que inúmeras gerações humanas, mas suas vidas não eram medidas de acordo com nossos parâmetros. Sua missão? Eu não saberia dizer. Parecia-me que vinham em paz, mas era possível que estivessem manipulando minhas impressões a respeito de suas reais intenções conforme seu próprio interesse. 

Eram muitas vozes que falavam ao mesmo tempo, um burburinho de uma língua alienígena pronunciada em sons com timbres, frequências e tonalidades diferentes, mas que, de alguma forma, eu entendia perfeitamente. O que diziam? Era como se estivessem conversando comigo. Não, na verdade, elas — as vozes — estavam falando comigo. Não mencionavam vingança, ataque, invasão, subjugação da humanidade, como naqueles filmes da década de 50. Pregavam harmonia, conhecimento, uma ampla compreensão do Universo e de que tudo e todos vinham da mesma explosão cósmica e outras coisas que pareciam uma conversa de hippies drogados com LSD. Não sabia no que acreditar, porque já lidara com muitas tentações e mentiras demoníacas. O curioso é que eu tinha consciência disso, das minhas dúvidas e dos apelos dos marcianos, enquanto ainda sonhava. E mais curioso ainda é que, quando acordei, as vozes ainda permaneciam lá, dentro da minha cabeça. Sentia-me como possuído pelo Diabo ou algum outro espírito, ou melhor, vários espíritos supostamente benignos. Porra, como eu faria para me livrar delas?

Eu havia suado tanto durante o sono que o sofá estava completamente encharcado. Fui direto ao banho, e abri o chuveiro bem forte na esperança de que a o barulho do jato de água ofuscasse aquela ladainha extraterrena antes que eu batesse a cabeça numa parede.

O sol já nascia lá fora. Quando finalmente decidi sair do banho, o volume das malditas vozes já não era tão alto, então, sem nem sequer me secar, atravessei o escritório e peguei o telefone para ligar ao Comandante Aderbal.

Eu precisava de uma autorização, um documento, uma ordem verbal, qualquer coisa que me desse acesso aos militares graúdos da Aeronáutica.


O INGRESSO

No tapume havia um cartaz de A dama do lotação. Apresentava Sônia Braga trajando um vestido vermelho, contra um fundo igualmente vermelho, segurando o peito direito como se dissesse: “Vem aqui mamar, neném. Vem!” Ao lado, a frase: “Ela se entrega a todos para continuar amando a mim”, provavelmente do personagem que representava o seu marido corno no filme. O anúncio também dizia que a história era de Nelson Rodrigues, e que o filme era dirigido por Neville D’Almeida e tinha canção-tema de Caetano Veloso.

Não era um time ruim. Senti vontade de voltar ao cinema imediatamente, mas agora eu tinha não só uma investigação para tocar adiante como vozes dentro do crânio que não paravam de me encher o saco, então desviei o olhar do cartaz no tapume e voltei a caminhar em direção ao boteco que ficava alguns metros adiante.

Comandante Aderbal já me esperava por lá quando cheguei. Tomava uma cerveja e comia um croquete com a aparência de um cagalhão petrificado.

— Bar estranho em um bairro mais estranho ainda pra marcar um encontro, Comandante.

— Não quando é um encontro extraoficial — respondeu ele. — Aliás, pra todos os efeitos, nem a investigação é tratada como oficial por nós.

— Um trabalho, pra mim, é sempre oficial. Mesmo quando não recebo grana nenhuma por isso.

— Escuta, Horácio! Eu não tenho notícias muito agradáveis. São péssimas, pra falar a verdade.

— Já sei, você vai dizer que não conseguiu liberação pra eu interrogar os figurões do ar.

— Bem, justamente o contrário. Eles desejam encontrá-lo, sim. É isso que me preocupa.

— Não entendi. — Eu nunca entendia essas ambiguidades dos militares, era uma coisa que me deixava ainda mais puto.

— São caras com quem a gente não pode se meter. Alto escalão de uma das forças militares com mais segredos guardados em suas bases, entende? São oficiais graduados que não estão nem um pouco a fim de deixar que narigudos metam o bedelho nos seus assuntos. Se querem te ver, Horácio, boa coisa não tem por trás disso. E ainda é capaz de mexerem os pauzinhos e acabarem com a nossa investigação.

— Eu já enfrentei coisas muito piores que vinham do ar, Comandante. Tipo os índios alados das machadinhas no Araguaia que entreguei de bandeja pra vocês, também sem receber nada por isso. Se esses galináceos voadores pensam que vão me intimidar, estão enganados.

— Eu só não quero que a investigação saia prejudicada por isso.

— Não tem investigação sem informações que nos tirem de um beco sem saída, Comandante. Aliás, como eu faço pra encontrar esses oficiais da Aeronáutica?

— Aqui neste papel tem o endereço de um escritório administrativo deles próximo ao Centro. Vão estar te esperando lá às 16 horas.

— Obrigado — respondi, apanhando o bilhete e já me levantando para ir embora.

— E, Horácio — interrompeu-me o Comandante. — Pra não dizer que não vai receber nada por esse trabalho, tome aqui. Comprei pra você.

Voltei alguns passos e peguei o que ele me oferecia.

Era um ingresso para A dama do lotação.


OS AERONÁUTICOS

Enquanto eu dirigia até o escritório dos aeronáuticos, as vozes retornaram à minha cabeça com aquele burburinho perturbador. E davam a impressão de estarem nervosos, porque as palavras, ou melhor, os ganidos de sua língua distinta, aumentaram de volume até chegar ao ponto em que pareciam gritar em súplicas e desespero.

Falavam em levar os companheiros de volta ao lar, para que recebessem os ritos fúnebres devidos, e, porra, aquilo começou a me dar uma pena, saber que eles também respeitavam e prezavam esses tipos de cerimônias. Eu, como ninguém, sabia o mal que pode acontecer quando certos rituais mortuários não são respeitados, coisas tipo aparição de fantasmas histéricos, vampiros esfomeados, e toda sorte de criatura que volta para incomodar os vivos. O corpo seco, por exemplo, que foi vomitado pela própria terra ao ser enterrado, como mencionei anteriormente.

Mas, vejam bem, eu fiquei com pena, porém não estava a fim de ouvir aquela lamúria dos marcianos confundindo minha mente e atrapalhando minha realidade. Eles que fossem exercer sua telepatia noutra cabeça. Então, liguei o rádio do mavericão lá em cima, para a música abafar o som dos meus pensamentos, que não eram bem meus, de fato. Por boa parte do caminho, a tática funcionou. Entretanto, quando Caetano Veloso apareceu com aquela música de Londres, em que ele fica repetindo que seus olhos procuram discos voadores no céu… aí já era sacanagem! Talvez não dele, mas dos marcianos, que deviam estar por trás disso. Sorte que eu já estava bem próximo ao destino a essa altura…

É engraçado, porque quanto mais discretos os militares desejam que seus prédios administrativos pareçam, menos eles o são. É fácil perceber logo de cara quando um edifício pertence a uma das três forças armadas. São construções que parecem corpos sem alma, como quando vemos o olhar vazio de um cadáver de olhos abertos. Identifiquei-me na portaria e mandaram eu subir até o sexto andar pelas escadas, porque os elevadores estavam enguiçados. Não consegui evitar rir por dentro, quando vi que os caras trabalhavam na merda. Subi cada lance tentando ignorar as vozes alienígenas, que estavam decididas a não me deixar em paz. Teria a ver com o meu encontro com os oficiais graúdos da Aeronáutica que me esperavam em seu escritório?

A sala ficava ao fundo do corredor. Bati na porta, não houve resposta. Então, girei a maçaneta e entrei por conta própria. Admito que foi uma surpresa constatar que o que eu imaginava ser um escritório com secretárias, arquivos e telefones tocando sem parar, não passava de uma sala de paredes imundas e cujo único móvel era uma cadeira no centro da sala. O que eu imaginava oficiais graduados — e talvez até fossem —, estavam mais para capangas de bicheiros, com seus óculos Ray Ban (lembrei do Comandante Aderbal, os militares à paisana gostavam mesmo dessas coisas), palitos no canto da boca (gostavam disso também) e camisas abertas no peito. Estavam escorados nas paredes, com as mãos escondidas nos bolsos. Era óbvio que queriam parecer intimidadores. Um deles acenou com a cabeça, dando a entender que era para eu me sentar na cadeira.

Atendi ao pedido, solicitamente.

— E então? — perguntou um deles, um careca com o rosto fustigado pela consciência. Devia já ter matado um batalhão de “terroristas”.

Resolvi abrir o jogo de cara.

— Estou investigando a morte dos três alienígenas carbonizados numa casa de tortura clandestina de vocês.

Os aeronáuticos se entreolharam. Em seguida, deram risadas de deboche forçadas, tentando fazer crer que ouviam as palavras de um louco. E, bem, louco eu acho que estava ficando mesmo, porque, ao mesmo tempo em que conversava com eles, as vozes na minha cabeça passaram a conversar diretamente comigo. Não era mais um burburinho incômodo e, às vezes, confuso, e sim como se alguém dirigisse exclusivamente a palavra a mim. “Diga que precisamos recuperar os corpos”, ouvi.

— Não vou dizer isso — respondi, em voz alta.

Os homens da sala ergueram o cenho, confusos.

“Precisamos levá-los de volta pra casa.”

— Perdão? — interveio o careca. Devia ser o chefe do trio.

— Nada. Eu só pensei alto.

— Bem, então queira nos fazer a gentileza de dizer de onde o senhor tirou essas conclusões.

“Nós revelamos os fatos pra você. Fale que sabemos a verdade e que exigimos nossos semelhantes de volta”.

— Quietos — gritei.

— Ei, foi o senhor que solicitou esse encontro com a gente — disse o careca, um tanto irritado.

— Desculpa, não foi pra vocês.

Os três homens entreolharam-se novamente. Agora, por certo desconfiavam de que ouviam mesmo um maluco.

— Sabemos muita coisa a seu respeito, senhor Horácio, detetive do oculto.

— Não tenho dúvidas disso.

— Então o senhor deve saber também que podemos usar muitas delas contra o senhor.

“Nós precisamos dos corpos. Diga que, se eles não entregarem de boa vontade, você vai roubá-los”.

— Eu não vou roubar nada — protestei.

— Não estou falando de roubos — respondeu o careca, surpreso. — Me refiro a suas ligações com magia negra, feitiçaria e outras atividades sombrias que são muito piores do que crimes comuns.

— Eu… de novo, não foi com vocês. Eu… acho que preciso ir embora.

Os três não disseram nada.

— Será que estou liberado?

— Bem, o senhor nunca esteve detido. Veio até nós por sua própria vontade e interesse.

Ergui-me da cadeira com pressa e deixei a sala sem acrescentar nada aos inquiridores. Precisava abandonar rápido a atmosfera opressora e deprimente que impregnava aquele prédio morto e decadente. A bem da verdade, eu me sentia oprimido mesmo era pelas vozes, que repetiam sem parar em meu cérebro que eu devia roubar os cadáveres do necrotério. Aquilo havia chegado longe demais. Resolvi fazer a vontade dos marcianos para me livrar das malditas vozes de uma vez por todas, antes que enlouquecesse por completo.

Quando entrei no bom e fiel Maverick, notei que os dois acompanhantes do careca com o rosto fustigado pela consciência me seguiam em um carro discreto. Ainda que se mantivessem na minha cola, não me importava. Eu daria um jeito levar os alienígenas para onde quer que seus amigos mandassem. Nem que enfrentasse os agentes aeronáuticos, se fosse preciso.


O TIRO

Tinha uma coisa que eu não podia reclamar das vozes alienígenas e nem dos aeronáuticos durões. Estavam entre os poucos que não falavam do nudismo de Sônia Braga desde que eu iniciara investigação. Não que fizesse diferença, mas seria muito melhor curtir a musa na telona do que roubar cadáveres extraterrestres de um necrotério.

Acelerei o bom e fiel Maverick e ziguezagueei entre alguns veículos a fim de despistar os agentes da Aeronáutica, mas eles eram bons e mantiveram-se no meu encalço. Nem faziam questão de passar despercebidos. Eu teria que bolar um plano durante o caminho para me livrar deles, se quisesse botar a mão naqueles corpos. Mas o quê?

Se tentasse contatar o Comandante Aderbal… Não, ele jamais permitiria que eu chegasse perto do necrotério se soubesse de minhas reais intenções. Também era provável que os aeronáuticos estivessem de olho nos passos dele, por ser o responsável pela investigação “oficial”. Entrar no local seria fácil, bastava mentir que precisava de novas informações ou coisa parecida e as sentinelas deixariam eu passar sem problemas. Mas como sair com os três cadáveres sem ser percebido? E, se fosse pego, o que eu devia fazer? Merda, por que as vozes na minha cabeça não me davam uma resposta para isso?

Então, pela primeira vez, o que ouvi das vozes me fez sorrir, ao invés de ter vontade de atirar nos miolos. Elas mandaram que seguisse adiante, tranquilizando-me, assegurando que, quando chegasse a hora, tudo se resolveria. Não sei por que acreditei nelas, mas eu precisava de algo ao que me agarrar. Àquela altura, os marcianos telepatas eram o único auxílio que me restava.

Encostei o bom e fiel Maverick na rua que dava para os fundos do necrotério. Isto tornaria a subtração dos cadáveres mais fácil. Ou menos chamativa. Os homens enviados pelo careca com o rosto fustigado pela consciência estacionaram a alguns metros de distância da minha traseira. Não desceram do carro. Talvez pensassem que minha visita ao local estivesse relacionada à investigação. Paspalhos!

Identifiquei-me à sentinela que vigiava o acesso ao necrotério. A princípio, desconfiei das vozes alienígenas, porque a situação já não começava bem. O guarda pediu que eu aguardasse enquanto verificava a lista de permissões fornecidas pelos superiores. Não havia meu nome lá e ele afirmou que eu não poderia entrar. Então ouvi no meu cérebro: “Diga que você vai entrar!” Obedeci. Falei ao guarda que sim, eu iria entrar. Ele ficou me olhando de um jeito gozado, um tanto boquiaberto, com o olhar perdido, antes de acenar com a cabeça e permitir minha entrada.

Não contive o sorriso ao perceber que, com a ajuda das vozes, é claro, eu havia telepatizado o recruta. A subtração dos corpos carbonizados seria tão fácil como baforar um Marlboro, eu supunha. E, até certo ponto da aventura, foi. Hipnotizei também a sentinela que guardava a porta da sala onde os cadáveres estavam. Encontrei os mesmos dois legistas beócios com quem conversara na última ocasião.

— O senhor outra vez — observou o mais velho.

— É, outra vez? — repetiu o mais novo.

Nem me dei ao trabalho de explicar. Falei apenas:

— Eu vim levar os cadáveres.

O mais velho olhou com expressão de espanto para o mais novo, que repetiu o olhar e a expressão. Depois, ambos olharam para mim.

— O senhor não tem permissão pra isso — disse o mais velho.

— É, não tem permissão — repetiu o mais novo.

— Eu vou ligar para o Comand… — tentou finalizar o mais velho, mas eu repeti que levaria os corpos e, neste mesmo instante, os dois ficaram com a mesma cara apalermada das sentinelas. Deixaram seus instrumentos cirúrgicos caírem das mãos e abriram passagem.

— Me ajudem a colocar os três corpos em uma só maca — ordenei, e eles prontamente obedeceram. Aquela magia dos alienígenas funcionava mesmo. Não sei se era branca ou negra, mas eu me sentia invencível naquele momento.

Com os alienígenas empilhados, empurrei a maca pelos corredores do necrotério em direção à saída dos fundos novamente. Até então não tivera problemas. Mas havia ainda os agentes da Aeronáutica para me livrar. Como eu lidaria com isso? Por certo não adiantaria tentar hipnotizá-los de longe, como fizera com as sentinelas. Também não poderia confrontá-los de outra forma. Certamente estavam armados, e eu, Horácio, detetive do oculto, cruzado a servir na batalha contra as forças malignas, só dispunha de estacas, crucifixos e outros símbolos sagrados em diversas religiões, alho, arruda e outros tipos de objetos que só funcionavam contra criaturas sobrenaturais. Revólver, até tinha um no porta-luvas, mas era reservado para disparar balas de prata na eventualidade de encontrar um licantropo à espreita. E de que adiantaria um .32 contra três agentes armados com o quê? Pistolas automáticas? Submetralhadoras?

Bem, eu logo descobriria.

Passei pela última sentinela, aquela que guardava o acesso ao prédio, e vi que ainda estava telepatizada. Só então notei que, desde que havia chegado ao necrotério, as vozes alienígenas tinham se silenciado completamente dentro da minha cabeça. Estariam concentradas, utilizando suas energias para me transmitirem aquele poder? Que fosse. Quando saí à rua com a maca, os agentes perceberam que algo estranho ocorria, desceram do seu automóvel e vieram em minha direção. No começo, a passos lentos, o que me permitiu retirar o lençol, abrir a porta do bom e fiel Maverick, arredar o banco para a frente e jogar dois cadáveres de qualquer jeito no banco traseiro. Uma vez feito isso, fechei a porta de supetão e rapidamente abri o porta-malas. Os agentes agora apressavam-se até mim. Com toda a habilidade que o momento me permitia, atirei o cadáver menor no interior e tampei com tanta força que o barulho fez a sentinela despertar de seu transe. Enquanto dava a volta até a porta do motorista, estavam todos, sentinela e aeronáuticos, no meu rastro. Nem tive tempo de entrar no veículo quando ouvi um estalo forte e seco, quase que simultâneo a uma pontada nas costas. Um dos malditos aeronáuticos me acertara com um tiro de pistola.

Talvez fosse a adrenalina, talvez o poder dos extraterrestres, mas o fato é que me joguei para dentro do carro sem pensar e, numa sequência rápida e certeira de gestos, enfiei a chave na partida e arranquei com o bom e fiel Maverick tão rápido quanto pude. O motor de oito cilindros do possante sempre servia para tais situações, ignorando as críticas de que é um beberrão de gasolina.

Olhei para o retrovisor e vi meus perseguidores dominados pela impotência e pela decepção. Jamais conseguiriam me alcançar. Eu finalmente estava livre deles.

Mas não das vozes, que retornaram tão logo escapei daquela situação.


O DISCO VOADOR

As vozes retornaram por um curto período de tempo apenas para me passar as orientações do local aonde eu deveria levar os corpos. O resto, vocês sabem, ao menos até o ponto em que me vi cercado pelos marcianos.

Ergui os punhos em posição de defesa, no caso de os marcianos partirem para a briga. No fundo, tinha certeza de que parecia um idiota fazendo isso. Ainda que fossem hostis, o que a essa altura eu sabia que não eram, não avançariam contra mim a socos e pontapés. Era mais provável que me pulverizassem com uma pistola laser ou outra arma tecnologicamente muito mais avançada. Ademais, o tiro da outra pistola, a de balas comuns dos agentes aeronáuticos, já me fazia ver o mundo girar. Eu estava ficando fraco, prestes a desmaiar… ou morrer.

Baixei os punhos novamente, tentei murmurar algumas palavras que não conseguiram sair da minha boca, cruzei as pernas feito um bêbado e desabei no chão. Os homenzinhos de pele laranja aproximaram-se mais, terminando por formar um círculo ao redor de mim. Continuavam olhando, não sei bem se curiosos, porque seus olhos de abelha não apresentavam expressões que revelassem sentimentos, emoções ou traços de personalidade. Eram apenas olhos de abelha, acompanhando de dois furinhos: um onde devia ser o nariz e o outro exercendo a função de boca.

Um deles se abaixou, agarrando-me pelas costas e virando meu corpo. Não tinha mais forças para reagir. E já que estava morrendo, que deixasse eles abreviarem meu destino. Só rezava para que fossem clementes e me concedessem uma execução rápida e indolor. Então, um clarão predominou em volta por uns poucos segundos. Não pude ver qual a fonte, mas desconfiava que vinha da mão do alienígena que me agarrava. Logo, senti uma ardência nas costas. Bem no furo de bala, para ser mais preciso. O que ele havia feito? E por que não mais falavam comigo através de sua telepatia?

Após me soltar, ele e mais alguns outros colegas tomaram os corpos carbonizados nos braços. Depois, todos se dirigiram novamente para o meio da mata. Eram cerca de quinze, vinte, talvez? Não podia dizer. Estava prestes a afundar na inconsciência quando luzes coloridas e cintilantes despontaram da vegetação, erguendo-se a uma altura de vários metros antes de pairarem exatamente acima de mim. Não tive dúvidas. Era sua nave espacial. Seu disco voador. Um dos famosos flying saucers in the sky. Não pude ver sua forma devido ao contraste entre as luzes e a escuridão do céu, então não poderia afirmar se, de fato, tratava-se de um disco ou um pires. De toda forma, eu testemunhava pela primeira vez que essas geringonças espaciais existiam. Eu, Horácio, detetive do oculto, descabaçava em experiencia de contatos com seres e veículos extraterrestres.

A nave não ficou por mais do que alguns instantes acima de mim antes de partir para o alto e desaparecer da atmosfera. Foi então que me permiti fechar os olhos e finalmente me entregar a um apagão sem saber se retornaria de um desmaio ou deixaria de existir nas mãos pútridas de um ceifeiro enviado pela Morte.

***

 Acordei quando o sol já estava a pino. Fora uma dor de cabeça provocada pela exposição a ele, sentia-me bem como poucas vezes me sentira na vida. Lembrei do tiro que havia tomado nas costas e pus a mão por baixo da camisa. Não estava mais lá. Nem furo de bala, nem cicatriz e nem nada. Era como se nunca tivesse sido acertado. Os alienígenas tinham me curado. Foi o que pensei no ato, pois, depois de tudo, já não duvidava de mais nada.

Olhei para o bom e fiel Maverick. Estava ali, paciente, aguardando-me de portas abertas. Era uma estrada tão remota que provavelmente ninguém passara por ali nesse tempo todo em que fiquei desacordado. O que faria agora? Ligaria para o Comandante Aderbal e explicaria o que acontecera e que o caso estava encerrado? Não. Enfiei a mão no bolso e puxei algo do qual ainda lembrava.

O ingresso para A dama do lotação, que ganhara como honorário pelo meu trabalho.

Será que a Sônia Braga aparecia pelada no filme mesmo?

Este era um caso para o qual eu não ficaria sem respostas…


Confira uma análise detalhada desta história em forma de podcast feita pela IA:


Capa da edição número 2 da antologia "Insólito! Assombroso! Inimaginável!", mostrando ilustrações de personagens pitorescas.

Este conto foi originalmente publicado na edição número 2 da antologia “Insólito! Assombroso! Inimaginável!”, do selo editorial independente Ficções Pulp!, que se encontra disponível na Amazon por um preço simbólico.

SÔNIA BRAGA PELADA EM “A DAMA DO LOTAÇÃO”: mil vezes “uau”! É Nelson Rodrigues, é noir, é histórico, é tudo. Que conto incrível. Fiquei vidrado e entregue a essa narrativa. O medo como é ambientada, a personalidade dúbia do protagonista, o uso inteligente do narrador-personagem… Muito obrigado por essa experiência. Sem contar a junção entre ficção e casos documentados. Deu vontade de ler mais contos protagonizados por esse detetive.

Henggo

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