A Mulher do Embalsamador

por Diego Quadros
11 minutos de leitura

Nahayau despertou quando os primeiros raios de sol eclodiram nos arredores de Men-nefer. Improvisara uma cama com esteiras de palha no teto de sua residência, mas o clima abafado e as aflições em relação ao destino acarretaram outra noite de sono agitado. Do pátio, ouviu a esposa cantarolando hinos ao deus Ptḥ, o venerado demiurgo da cidade. Sorrindo, ele caminhou até a borda do teto.

Abebayankh enchia alguns jarros de cerveja. Costumava vender pelas ruas da vizinhança a bebida e os pães que produzia em casa. A Nayahau não agradava que a mulher fizesse isso. Não pelo fato de ela ajudar nas economias da família; o ofício de embalsamar mortos pobres já não vinha garantindo bons lucros, e qualquer fonte extra de renda, fosse em sacos de grãos ou em deben de cobre, era mais do que bem-vinda. O que preocupava o marido, era que Abebayankh se submetesse a tamanho esforço em estágio final de gravidez do décimo terceiro filho. Carregava uma barriga tão grande que mal conseguia ajustar a cesta de produtos debaixo do braço. Mas a esposa era pertinaz, e Nayahau preferia não aborrecê-la.

Olhou para o horizonte nascente. Não muito longe, podia ver as águas de Yor – “o rio” – fluindo em direção a Uat-Ur, o grande mar de água salgada. Fazia poucas semanas que o rio recuara para o nível habitual, marcando o fim do período de cheia e o início da estação de plantio. Nada de anormal ocorrera naquele ano, e Nayahau, além de todos os habitantes de Kṃt, aquela rica nação de terras negras e férteis, agradecia diariamente ao soberano divino, peraya Khakaura Senuseret III, pela conquista da generosidade dos deuses.

Concluída uma breve oração, ele inflou os pulmões com o ar seco e arenoso que a brisa trazia da Terra Vermelha, enxugou o suor da testa com as próprias mãos e, assoviando, desceu pela escada até o interior de sua morada.

***

Abebayankh enfeitava-se para encantar a clientela. Trançou os cabelos lisos e negros, borrifou perfume nas partes do corpo que costumavam exalar um odor desagradável, delineou os olhos com kohl, a rica tintura escura importada do oriente, pendurou o magnífico pingente de lápis-lazúli ao pescoço e cobriu-se com um largo vestido de linho branco que disfarçava o tamanho da barriga. Ainda contemplou a si mesma no espelho, antes de se retirar do quarto.

Nayahau atirou um beijinho à esposa enquanto se dirigia ao cantinho da casa reservado ao santuário. No pequeno altar, três estatuetas feitas pelas mãos hábeis de um artesão talentoso: o anão robusto, barbudo, de perninhas tortas, era Bes, deus protetor do parto e dos recém-nascidos; Taweret, a deusa gestante com cabeça de hipopótamo, guardadora das futuras genitoras e propagadora da fertilidade, era companhia frequente de Bes nos lares da nação; Hwt-ḥr era a deusa representada como uma vaca, ligada a Taweret em diversos aspectos referentes à proteção das mulheres, mas que unia os papéis de mãe, esposa e amante – a completa percepção feminina pela sociedade. Era a ela que Nayahau dedicaria o culto daquela manhã.

O embalsamador lavou a estatueta da deusa com um pano umedecido pelas águas de Yor; em seguida, ungiu a deusa com um óleo de essências aromáticas e, por fim, depositou uma tigela com tâmaras e figos aos pés da imagem. Uma vez alimentada, Hwt-ḥr ouviu de Nayahau súplicas de benção à gestação da esposa e ao nascimento do bebê, previsto para logo. O homem também rogou pela saúde espiritual de Abebayankh, que chegava aos limites do esgotamento do corpo nos dias em que trabalhava nas ruas. Hwt-ḥr ainda precisou ouvir de um marido transbordando de sêmen o pedido para que restaurasse, o mais breve possível, o apetite sexual da exausta gestante.

No quarto das crianças, Abebayankh se ocupava em despertar os sete filhos, todos rapazes, que ainda lhe restavam vivos. Chamava-os pelo segundo nome, visto que o primeiro era comum a todos: Utshepit. De tal sorte, o primogênito era Utshepit Uaynu, o segundo mais velho era Utshepit Sennu e assim por diante, conforme a ordem de seus nascimentos. Uma vez despertos, a mãe passou instruções para durante sua ausência e prometeu retornar a tempo de preparar o almoço.

Nayahau terminara de amenizar a própria libido no banheiro e vestia sua tanga quando a esposa o abordou. O dia seria de muito trabalho na oficina, então Abebayankh lhe ofereceu uma bolsa com pães, frutas e alguns legumes para que não passasse fome no cumprimento de suas tarefas. Não era costume do marido se alimentar em meio a cadáveres eviscerados, mas ele agradeceu a boa vontade da mulher com um abraço e uma carícia na barriga. Olharam-se nos olhos por um momento que parecia interromper o sopro de vento no deserto.

Decidiram sair de mãos dadas até o portão de casa. Trocaram um beijo de despedida e, então, seguiram rumos opostos.

Nayahau, para o silêncio de seus clientes mortos.

Abebayankh, para a choradeira de seus clientes sovinas.

***

O caminho até o mercado costeava o rio. Abebayankh passou pelos lavadores de roupas e não conseguiu evitar um sentimento de pena por aqueles homens que desempenhavam o pior dos ofícios em toda a nação. Teve uma pontada de receio de que algum de seus filhos acabasse como aqueles infelizes, lavando os trapos impregnados de dejetos humanos, expostos aos crocodilos que habitavam as águas de Yor, recebendo um pagamento menor do que os agricultores mais pobres. Aos operários que erigiram as pirâmides monumentais, pelo menos eram garantidas algumas regalias.

A mulher buscou conforto na fantasia de que os filhos seriam empregados públicos, quem sabe escribas ou soldados a serviço do nomarca. Talvez algum deles chegasse a vizir. Por que não? Riu dos próprios sonhos. No fundo, Abebayankh sabia que os filhos seguiriam o ofício do pai.

***

Já nos arrabaldes de Men-nefer, Nayahau fez uma visita ao escriba que tratava de sua contabilidade. Revelou ao velho as angústias em relação aos rendimentos de seu negócio, que minguavam a cada mês. Como não se bastasse, teria mais uma boca para alimentar em poucas semanas. Estava ciente de que a saúde de suas finanças era diretamente inversa aos tempos de prosperidade em Kṃt, quando a taxa de mortalidade entre os miseráveis diminuía drasticamente, mas nem por isso desejava que um período de fome acometesse novamente sua terra.

O velho contabilizou alguns míseros deben de cobre e de prata que haviam entrado no mês anterior, diminuiu pelas despesas com frascos canópicos, líquidos corrosivos e outros materiais de trabalho, e apresentou um plano de orçamento para Nayahau, recomendando austeridade no corte de gastos para os próximos meses. Com outro filho à vista, economizar parecia impossível ao embalsamador.

***

Abebayankh não via a hora de esvaziar a cesta pendurada no ombro. Pesava-lhe tanto que sua vontade era de distribuir os produtos de graça aos transeuntes. Decidira vender os pães e a cerveja no grande mercado, a fim de poupar esforços com caminhadas extenuantes de porta em porta. O problema seria burlar os fiscais e agentes administrativos do peraya, que controlavam as atividades econômicas como se dotados da visão de um falcão, o olhar onisciente de um deus. Aproveitaria o dia de movimentação intensa para se fundir à massa de compradores e passar minimamente despercebida.

***

A oficina de embalsamamento de Nayahau se afastava um pouco dos limites de Men-nefer para facilitar o cortejo fúnebre de seus clientes, enterrados pelos parentes em covas rasas no deserto. Naquela manhã, dois cadáveres aguardavam pelos procedimentos iniciais de mumificação, enquanto outros quatro, mergulhados em natrão, cumpriam o prazo de dez semanas para a completa desidratação.

A primeira atitude que o agente fúnebre tomou foi alimentar os cerca de vinte gatos do local. Eram animais sagrados, por certo, mas também ajudavam a manter afastados os ratos danificadores de corpos. Nayahau não poderia esquecer de alimentar ainda a estatueta de Inpw, o deus dos mortos e moribundos, no cantinho sagrado da oficina. Todas as manhãs, ele rogava para que a divindade representada com a cabeça de um chacal conduzisse de forma diligente a alma de seus clientes ao submundo. Apenas depois de cumpridos tais ritos, o embalsamador apanhava seus instrumentos e iniciava os trabalhos.

***

Para Abebayankh, o trabalho nem bem iniciara e já lhe rendia problemas. Enquanto se esgueirava entre os frequentadores do mercado, abordava-lhes aos sussurros, oferecendo as veniagas de sua cesta. Uma fatia de pão em troca de um saquinho de uvas, um copo de cerveja por alguns ovos de codorna, tudo servia de moeda de troca, mas não demorou até ser farejada por um vendedor licenciado.

Logo, estava cercada por fiscais e brutamontes núbios investidos no cargo de policiais. Os homens tentaram apanhar sua cesta à força, mas ela era valente. Fosse uma deusa, seria representada com a cabeça de uma leoa. Na confusão, um dos núbios, insensível à gravidez de Abebayankh, empurrou-lhe de encontro ao chão. Sua reação instintiva foi se levantar para avançar contra o animal, mas sentiu como se um khopesh lhe atravessasse a barriga. Eram as contrações, e Abebayankh rugiu.

Estava prestes a ter o bebê.

***

Nayahau ocupava-se introduzindo um tubo no ânus de um dos cadáveres. Através dele, despejaria óleo de cedro para dissolver os órgãos internos. Era o método de mumificação mais barato, próprio para clientes incapazes de pagar por evisceração manual, extração do cérebro pelas narinas, preenchimento com serragem e ervas aromáticas, e unção com cera de abelha.

Não que fosse inapto para realizar técnicas sofisticadas de embalsamamento. Aprendera a mumificar nobres e sacerdotes desde muito jovem, quando assistente de mestres na arte. O problema consistia no ritual que sucedia a retirada dos órgãos de um morto. Como punição por profanar o corpo de um falecido, o artesão funerário — geralmente um aprendiz — era obrigado a correr pelas ruas em meio a uma chuva de paus e pedras atirados pela multidão. Nayahau quase morrera numa destas cerimônias, e carregava o trauma desde então.

Quem sabe não chegara o momento de contratar um assistente para si? Os filhos ainda eram mancebos — e ele não os submeteria ao ritual de lapidação —, mas poderia pagar a um jovem aprendiz, se começasse a atender clientes das classes mais abastadas.

Era uma ideia atraente que acabou interrompida pelos gritos de um menino, vizinho da família, ao entrar sacolejando os braços na oficina, anunciando que Abebayankh estava para dar à luz.

***

Abortos espontâneos eram tão comuns como as palmeiras às margens de Yor, e a lembrança de que três, dos cinco filhos mortos de Nayahau e Abebayankh, jamais tiveram a chance de respirar fora do ventre da mãe, fazia com que o coração do embalsamador se contraísse amedrontado, quase incapaz de bater.

Ele pôde ouvir os urros da esposa antes de entrar no pátio de casa. Por sorte, uma parteira auxiliava na tarefa de trazer o bebê apressado ao mundo. O cenário, entretanto, era desolador. Deitada no chão da sala, Abebayankh era uma ilha de fertilidade em meio a uma lagoa de sangue. A pele apresentava a coloração do marfim. Os olhos se escondiam no fundo das órbitas. Dor — no trincar dos dentes. Dor — no frêmito dos ossos. Dor.

A mulher morria, e a parteira solicitou que Nayahau trouxesse as estatuetas dos deuses protetores das mães e dos partos imediatamente. O homem correu para o santuário e agarrou de uma única varrida as imagens de Bes, Taweret e Hwt-ḥr. Ainda teve a presença de espírito de passar no quarto e apanhar o Ankh, a cruz ansata, amuleto símbolo da vida — e da ressurreição. Circundou a esposa com os ídolos, pôs-lhe a cruz no pescoço. Abebayankh agarrou firme sua mão, esmagou-lhe as falanges. Nayahau não se conteve, desprendeu uma lágrima.

Quando viu aquela matéria anormal escorrendo pelas pernas de Abebayankh, ele, o embalsamador que destripava corpos desde a juventude, que mumificava cadáveres ressequidos, sentiu-se afundar em um rodamoinho. A cabeça pendeu para um lado, o corpo se atirou para o outro e a visão se dispersou pelas trevas.

***

Nayahau acordou quando o sol se escondia por trás do deserto. Estava banhado pelo sangue da esposa. Sozinho.

Levantou-se com sofreguidão, correu até o quarto. Abebayankh dormia, abraçada a um lindo bebê de tez bronzeada. Uma menina! Parecia tanto com a mãe… Ela mexia os bracinhos, sorria para o vazio. 

Nayahau teve certeza de que a pequena se alegrava com Bes, que lhe fazia caretas de algum canto do quarto. Ele tomou a filha nos braços e a beijou. Deitou com a bebê ao lado da esposa, pensando na primeira questão a ser resolvida.

Decidiu batizá-la com o nome da mãe.

Abebayankh.

A amante da vida.


Confira uma análise detalhada desta história em forma de podcast feita pela IA:


Capa da edição número 5 da antologia "Insólito! Assombroso! Inimaginável!", mostrando ilustrações mostrando cenas vintage de ficção científica.

Este conto foi originalmente publicado na edição número 5 da antologia “Insólito! Assombroso! Inimaginável!”, do selo editorial independente Ficções Pulp!, e se encontra disponível na Amazon por um preço simbólico.

Você também pode gostar

Deixe um comentário

Este site usa cookies para melhorar a sua experiência. Presumimos que você concorda com isso, mas você pode optar por não participar se desejar. Aceitar Saiba mais

Focus Mode