Durante os vinte três anos em que Sherlock Holmes utilizou os talentos de sua mente para desvendar mistérios de toda sorte nas terras do Rei, muitos foram os casos envolvendo membros notáveis da sociedade britânica. Inúmeros também são os registros que tenho guardado em meus anuários a respeito de ocorrências insólitas, que inclusive desafiaram a lógica sagaz de meu amigo detetive.
O caso que estou prestes a relatar envolve figuras ilustres e fatos inexplicáveis, embora não tenham acontecido durante o período oficial em que Holmes atuou como investigador particular, e sim durante a quietude da aposentadoria, já em suas últimas semanas de vida. De certa forma, fico contente que ele tenha tido a chance de reavivar o espírito, tal como um derradeiro estertor, às portas do finamento, mas não posso deixar de lamentar que o seu caso final tenha sido também o mais desanimador, levando-se em conta o desfecho confuso.
Era um sábado frio e cinzento em South Downs. Já fazia um bom tempo que eu não via meu velho amigo, então procurei disfarçar a impaciência enquanto ele falava e gesticulava de maneira entusiasmada sobre apicultura, mostrando-me, a despeito de uma garoa desconfortante, a sua criação de abelhas.
— Meu caro Watson, embora seu pé insista em revelar impaciência através de movimentos incessantes, eu asseguro que muitas são as coisas que podemos aprender com estes pequenos e laboriosos insetos, e não me refiro ao fato de serem magníficos produtores de mel. Veja como são capazes de viver em sociedade com organização e disciplina, executando suas funções com perfeita harmonia, indiferentes à divisão de classes.
— Não me importo em observar sua colônia de abelhas, Holmes — respondi. — O que me deixa apreensivo é saber que você insiste em não abandonar antigos hábitos prejudiciais à saúde, mesmo já sendo um septuagenário.
— Ora, Watson! Você bem sabe que as doses moderadas de cocaína que costumo injetar servem justamente para manter a integridade de minha saúde mental diante do tédio que a aposentadoria representa.
Na qualidade de médico, eu estava pronto para listar infindáveis motivos pelos quais era contra o uso de drogas aditivas, mas nossa conversa foi interrompida pela governanta.
— Sr. Holmes — disse ela. — Há uma visita aguardando o senhor na casa. Um tal de sr. Houdini.
— O mágico? — perguntei, em tom de gozação.
— O próprio, Watson! — respondeu Holmes, como se já esperasse a visita. — Uma celebridade mundial requisitando os serviços de um velho detetive jubilado.
Na casa, encontramos um homem de baixa estatura, cabelos repartidos ao meio, deslizando pelas laterais da cabeça como um telhado duas águas, o rosto de aspecto vampiresco, quase ameaçador. Não tive dúvidas de que se tratava de Harry Houdini, sua imagem era frequente nas manchetes de jornais.
— Sr. Holmes, presumo — disse ele, dirigindo-se ao dono da casa. — O senhor é exatamente como eu imaginava, graças às descrições precisas oferecidas pelas narrativas do sr. Watson. Aliás, em razão delas, sua reputação o precede.
— Digo o mesmo de sua reputação, sr. Houdini — falou Holmes. — Só não estou certo se pelos seus números de ilusionismo ou pela sua batalha pessoal contra o espiritualismo.
— Pois esta é a razão que me traz aqui. Venho solicitar sua ajuda no combate a essa doutrina fraudulenta na esperança de não perder uma amizade pela qual tenho muito apreço. Os senhores obviamente conhecem o escritor, seu conterrâneo, sir Arthur Conan Doyle. Permitam-me, então, encurtar a história.
O ilusionista revelou suas experiências frustradas com o espiritualismo, quando, desorientado pela morte de sua idolatrada genitora, buscou consolo em sessões mediúnicas que, mais tarde, mostraram-se enganosas, meros esquemas elaborados por falsários no intuito de lucrarem em cima da dor e da miséria alheia. Uma vez comprovado que fora vítima de tais golpes, jurou que dedicaria o resto de seus dias a desmascarar os golpistas. Inúmeras eram as sessões de mesas giratórias, tabuleiro Ouija, psicofonia e psicografia a que ele comparecia apenas para expor os truques utilizados pelos charlatães. Não encontrara uma única comprovação de autenticidade nas supostas manifestações paranormais.
— Tenho plena certeza de que o senhor — interveio Holmes — domina cada artimanha utilizada com o fim de enganar a mente humana. Mesas giratórias, por exemplo, são facilmente explicadas pelo fenômeno do efeito ideomotor, conforme já comprovou o físico Michael Faraday. E vale lembrar que até mesmo intelectuais e cientistas são suscetíveis a tais credulidades. Vide Eusápia Palladino, falecida há alguns anos, que conseguiu ludibriar nomes como César Lombroso e Pierre Curie.
— Pois isto nos leva ao caso de sir Conan Doyle — disse Houdini.
Em viagem aos Estados Unidos, Doyle convencera Houdini a comparecer a uma sessão mediúnica comandada por sua esposa, Jean Doyle, em que ela escreveu uma carta psicografada de quinze páginas enquanto possuída pela alma da mãe do mágico. O problema era que a carta estava escrita em inglês, e a mãe de Houdini não falava uma só palavra do idioma, visto que era uma imigrante húngara. Além disso, sendo esposa de um rabino, sua mãe jamais enviaria ao filho desenhos de cruz como os que constavam nas páginas da carta.
— Não digo que a sra. Doyle tenha feito por maldade — disse Houdini —, mas era óbvio que, talvez induzida pelo poder da autossugestão, ela estava equivocada. Não quis falar na ocasião para não magoar meus amigos, mas agora Doyle espalha aos quatro ventos que sou um crente da doutrina que ele segue.
— E imagino que o senhor tenha recorrido a mim para ajudar a convencer sir Doyle da inexistência de manifestações sobrenaturais — disse Holmes.
— Exato. Tenho outra sessão marcada para amanhã na residência do casal, e só aceitei comparecer para pôr um fim nesta ilusão em que eles estão vivendo. Nem que isso custe nossa amizade.
— Pois pode contar com a nossa presença, sr. Houdini — assegurou Sherlock Holmes, incluindo-me no imbróglio sem nem ao menos me consultar. — Será uma honra resgatar nobres almas, embora eu não veja prazer em desempenhar uma tarefa tão fácil para minha lógica dedutiva.
Doyle e Houdini nos aguardavam defronte à mansão do escritor em Crowborough. Vistos de longe, a impressão era a de que Doyle tinha, pelo menos, duas vezes o tamanho do mágico. Uma figura imponente, ostentando um bigode volumoso e bem cultivado, parecia mais um atleta do que um homem de letras.
— Sir Arthur — reverenciou Holmes —, sei que o senhor considera histórias detetivescas como literatura menor, mas devo dizer que sou grande apreciador de seus livros, embora sempre consiga antecipar os finais de suas tramas.
— E o senhor é um personagem e tanto, sr. Holmes, digno das aventuras narradas pelas excelentes crônicas de seu amigo, o dr. Watson, a quem ofereço minha admiração como leitor — respondeu Doyle, fazendo-me ser atingido por uma pontada de vaidade.
Como passara da hora do chá, decidimos todos realizar a sessão mediúnica sem delongas. Contrariando as expectativas, Conan Doyle estava radiante pela possibilidade de nos oferecer provas da legitimidade do espiritualismo, não poupando entusiasmo ao falar da evolução do espírito e disparando críticas mordazes ao materialismo fútil.
A sra. Doyle, uma dama de educação ímpar, claramente devotada ao marido, recebeu-nos com um terno sorriso na sala em que se desenrolaria a sessão. Pediu que sentássemos em volta de uma grande mesa redonda e que segurássemos as mãos uns dos outros. Holmes a encarava com olhos reveladores de sua desconfiança e seu menosprezo para com o sexo feminino.
Já era noite quando a esposa de sir Arthur fechou as pálpebras e começou a murmurar uma prece aos espíritos. Talvez influenciado pela ambientação do recinto, imerso no lusco-fusco proporcionado pelas chamas de umas poucas velas, senti-me desconfortável com uma brisa gelada que tomou conta da sala, ainda que as janelas e as portas estivessem fechadas. Houdini sacudia a cabeça em descrença, visivelmente contrariado. Doyle parecia enxergar o além, como que enfeitiçado pelo ar de gravidade da esposa. Holmes observava cada detalhe nas expressões de nossa anfitriã.
— É mesmo você, Sherlock? — perguntou a sra. Doyle subitamente, com um timbre de voz diferente, como se fosse uma senhorita décadas mais jovem.
Percebi que o corpo do detetive estremeceu neste momento.
— Alberta? — perguntou Holmes, contraindo a face.
— Oh, meu querido Sherlock. Ainda lembro quando passeávamos de mãos dadas pelos campos de lírio e você juntava um punhado de pétalas para que chovessem sobre minha cabeça. Éramos tão jovens! Crianças! Será que, de fato, nos casaríamos? Quando lembro do abominável acidente… Oh, Sherlock, sinto tanto a sua falta, isolada aqui neste plano. A boa nova é que em breve você me fará companhia. Não me refiro a meses, nem anos. Meus guias espirituais anunciaram que em semanas, de acordo como o tempo é contado no plano material, você realizará a passagem, meu amor. Sim, é verdade. E aqui, no plano etéreo em que me encontro, existem muitos campos de lírio. Poderemos, então, fazer chuvas de pétalas como naquela época…
A sra. Doyle interrompeu a fala, levando a mão à cabeça, como se estivesse acometida por um ataque de cefaleia. Sir Doyle correu em auxílio da esposa. Houdini mal conseguia evitar um sorriso com o canto dos lábios, ao passo que Holmes, boquiaberto, permanecia em silêncio.
Decidimos fumar nossos cachimbos no escritório, enquanto sir Arthur conduzia a sra. Doyle ao quarto a fim de que repousasse. Houdini andava de um lado ao outro. Finalmente, dirigiu-se a Holmes:
— E então? O que o senhor acha? Não fica evidente a que ponto uma pessoa crente é capaz de chegar movida pela força da autossugestão?
— Não estou convencido disso, sr. Houdini — respondeu Holmes, sem desviar os olhos do vazio.
— Oh, por Deus, sr. Holmes! Não me diga que o senhor se deixou levar por aquela cena teatral?
Antes que Sherlock respondesse, sir Conan Doyle chegou ao escritório.
— E então, sr. Holmes? — perguntou ele, exibindo um sorriso que lhe cobria o rosto. — Será que o nobre detetive alcançou um resultado conclusivo sobre a autenticidade das manifestações espiritualistas?
— Meu caro sir Arthur, receio necessitar de mais tempo para chegar a uma conclusão lógica e inquestionável — respondeu o detetive, para o desespero de Houdini, que levou a mão à testa. — Admito que a sra. Doyle, ou quem quer que estivesse falando àquele momento em volta da mesa, sabia de coisas a respeito de meu passado que só eram de meu conhecimento. Prometo que refletirei acerca da experiência e em alguns dias lhe retornarei com a minha opinião.
Sir Arthur Conan Doyle jamais recebeu a resposta. Meu amigo Sherlock Holmes, o maior detetive da história, a mente mais brilhante do mundo, faleceu poucas semanas depois. Assumi a tarefa de realizar a autópsia de seu corpo e não me espantei com o resultado do laudo: morte por overdose de cocaína.
Harry Houdini e sir Doyle romperam os laços de amizade pouco tempo depois, e passaram a travar uma batalha de ideias e xingamentos que ajudou a aumentar as vendas de exemplares dos jornais. Nunca tentaram uma reconciliação, visto que o ilusionista morreu cerca de um par de anos após Holmes.
Quanto a mim, ciente de que a brisa do além já alcança a soleira de meu lar, jamais esquecerei o que Holmes falou enquanto deixávamos a residência dos Doyle.
— Meu caro Watson, você se lembra daquele caso do rosto amarelo, quando pedi que falasse baixinho em meu ouvido a palavra “Norbury” sempre que o excesso de confiança em meus talentos prejudicasse minha visão dos fatos? Pois então, algo me diz que esta experiência em Crowborough se aplicaria perfeitamente àquele pedido…
Confira uma análise detalhada desta história em forma de podcast feita pela IA:

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