O Paciente Zero

por Diego Quadros
13 minutos de leitura

Estou correndo de mãos dadas a uma mulher. Quem é ela? Minha esposa? Namorada? Uma pessoa qualquer? Não faço a menor ideia, mas sei que compartilhamos um sentimento: tememos por nossas vidas.

Chegamos ao estacionamento de um supermercado, o peito dói, estamos ofegantes, exaustos — não há tempo para descansar. Não arriscamos virar a cabeça, mas é possível ouvir os grunhidos cada vez mais próximos daquela horda de criaturas.

A mulher tropeça, cai ao chão, desprendendo-se de minha mão. Olho para ela, mas não paro de correr. Ela estende o braço, numa vã esperança de que eu volte para ajudá-la.

Não volto.

Apresso-me em entrar no supermercado sob seus gritos de socorro. As portas abrem, são automáticas. Merda, não vão impedir a chegada daqueles monstros. Faço um escândalo, suplicando para que travem as entradas. Ninguém se dera conta da ameaça até então.

Minha atenção retorna para o estacionamento. Vejo, através dos vidros, dezenas de bestas em forma humana aglomerando-se ao redor da mulher. Não ouço mais seus clamores. Já deve estar morta, estraçalhada pela fome e pela fúria ensandecida daqueles carniceiros. Quem era ela? Um véu de culpa recai sobre mim, obscurecendo minha vista. Como fui capaz de abandoná-la?

O gerente pede que todos se acalmem. As portas foram trancadas a tempo. Mas o quanto resistirão à invasão iminente? Sento no piso, preciso descansar. Só então percebo a dor em meu braço. É uma ferida. Marcas de dentes. Será que fui mordido?

 

Os médicos cercavam o leito do Paciente Zero. Estavam satisfeitos com os resultados dos últimos exames. Concluíram que chegara a hora de despertá-lo do coma induzido. Ressuscitá-lo. A imprensa já se encontrava em polvorosa. O mundo ansiava por conhecer o primeiro ser humano curado da praga zumbi na história.

O homem demorou até recobrar a consciência. Era natural. Supondo que tenha sido transformado logo no início da epidemia, estivera clinicamente morto por mais de quatro anos. Como se sentira durante este tempo? Lembraria de suas ações? Mantivera algum resquício de consciência enquanto assolado pela maldita doença?  E de sua vida anterior, será que se recordaria? Todos desejavam saber.

Quando acordou, foi recebido pelo médico-chefe.

— Bem-vindo de volta ao mundo dos vivos sorriu o velho.

O médico, então, explicou ao Paciente Zero como o planeta fora assolado por um vírus semelhante ao da raiva, transmitido pelo contato com fluidos dos infectados, e que transformava as pessoas em criaturas irracionais e ferozes, dominadas por uma espécie de fome incontrolável que as induzia a devorar qualquer pedaço de carne que encontrassem pelo caminho, fossem pessoas ou animais, e de como os doentes mantinham-se num limbo entre a vida e a morte, sofrendo com uma decomposição gradual de seus corpos, mas ainda capazes de se movimentar com agilidade assombrosa.

Prosseguiu detalhando como os governos de todas as nações se uniram para combater a disseminação da peste, investindo fortunas no desenvolvimento de programas de saúde que descobrissem uma vacina para os não contaminados e uma forma de cura para o que a mídia batizara de “zumbis”. Finalizou informando que levara alguns anos para a elaboração de um antídoto, o que permitiu que as forças armadas se encarregassem da captura dos enfermos para os testes iniciais da droga.

— Você teve sorte. Foi o primeiro a ser encaminhado para tratamento. E tudo saiu exatamente como o planejado. Agora, é esperar pela sua total recuperação, a fim de que tenha condições de levar uma vida normal outra vez.

 Sorte, perguntou-se o Paciente Zero, enquanto analisava as inúmeras cicatrizes em seus braços. Eram consequência das cirurgias para reconstruir as partes do corpo severamente afetadas pela decomposição. Uma enfermeira lhe alcançou um espelho. O rosto estava bastante desfigurado, mas não exatamente repulsivo.

— Fizemos o melhor, do ponto de vista estético. É bom não se preocupar com isso, o importante é que seu organismo está completamente saudável agora. Devemos ficar mais atentos às suas condições mentais. Você está sofrendo de amnésia? É possível que as lembranças de sua vida pregressa, e mesmo de sua existência como infectado, retornem aos poucos. É necessário se preparar.

O convalescente virou o rosto para o lado. Suspirou.

— Pensando em como vai ser daqui pra frente, não é? Sei que está tudo confuso agora, mas fique tranquilo. O governo elaborou um programa de assistência e reabilitação aos pacientes recuperados. Em breve, você receberá a papelada burocrática. Até lá, precisa descansar e manter a cabeça vazia pra ficar cem por cento, física e psicologicamente.

Manter a cabeça vazia…

Seria possível?

 

Rolo pelo chão do supermercado. É uma dor horrível. Começou na barriga, em seguida me atingiu os músculos, os ossos, o caixa encefálica. A saliva me escorre pelo canto da boca. Grito, depois emito grunhidos semelhantes aos daquelas bestas que devoraram a mulher sob meu olhar covarde. O que está acontecendo comigo?

As pessoas recuam, afastam-se de mim. Por que ninguém me ajuda? Será que mereço? Estão todos com medo. Meu corpo, agora, estremece, convulsiona. Não controlo mais os meus membros, sinto que reviro os olhos.

Bato a cabeça involuntariamente, repetidas vezes, contra o chão. Aos poucos, a visão se dissipa, os ouvidos são abafados, meu corpo se rende.

Por fim, a escuridão.

 

O Paciente Zero não conseguia disfarçar o incômodo diante de tantas câmeras, microfones e jornalistas disparando perguntas retóricas, capciosas e falsamente ingênuas, mas atender à entrevista coletiva era exigência do governo para que o “ressuscitado” (assim referiam-se a ele na mídia) fizesse jus ao benefício assistencial.

— Como é viver pela segunda vez?

— Não sei, ainda não tive tempo de descobrir.

— Quais as perspectivas para o futuro?

— Me tornar vegetariano.

— Disseram que você não lembra quem era antes de se transformar num daqueles… bem, já escolheu um novo nome?

— Não. Vou procurar ideias na internet.

— Que tal Lázaro?

— É um nome de merda.

— É um nome simbólico pra alguém que ressuscitou.

— Ou pra quem agora tem a aparência de um lazarento. Olhem meu rosto.

— Como você se sente a respeito de tudo isso?

— Culpado.

— Culpado?

— Sim. Eu fiz mal a várias pessoas.

 

Ergo-me de um salto. Rosno feito um cão do inferno. Vejo as pessoas fugindo para todos os lados. Na boca, um gosto de podridão. Não sinto o cheiro de nada que não seja carne. Não tenho emoção alguma que não seja sanha, pura e irrefreável selvageria. Meu instinto é guiado por uma única necessidade: fome.

Quando menos percebo, estou em cima de uma criança, arrancando nacos de seu pescoço diante dos pais, impotentes, paralisados. Largo a carcaça da menina pela metade e persigo qualquer um que se movimente ao redor. Sinto pancadas eventuais, mas não esboço reação de defesa, não tenho dor. Apenas ataco, feroz, implacável, incontrolável.

Em pouquíssimo tempo, deixo um rastro de devastação gigantesco. Mortos, feridos, não me escapa ninguém. Principalmente os mais próximos.

Se ainda me restasse um ínfimo grão de consciência, estaria me perguntando:

No que foi que me transformei?

 

O apartamento emprestado pelo governo consistia em apenas sala, banheiro e quarto. Como suas dimensões afetavam a percepção do Paciente Zero, dependia de seu humor. Às vezes, sentia-se oprimido, apertado entre paredes que davam a impressão de se mover para a frente, até que conseguissem esmagá-lo. Em outras ocasiões, parecia morar num castelo, amplo, vazio, solitário. Concluiu que, pelo tempo em que estivesse morando ali, só poderia esperar do futuro monotonia e falta de propósito.

Reviver já se mostrava inútil. Como zumbi, entretanto, não estaria melhor.

 

Em minha volta, apenas silêncio. Inércia. Torpor.

Caminho à guisa de um moribundo, tentando seguir em frente, sem saber aonde ir.

É um mundo solitário, esse. Vazio. Não é morte… e também não é vida.

Mas não tenho compreensão disso, naturalmente. No estado em que estou, é impossível assimilar a realidade.

Só sinto fome.

E nada mais.

Faltavam três pessoas na fila do seguro social até que chegasse a vez de o Paciente Zero ser atendido. Analisou o local. Tão deprimente. Prédios do governo sempre são desbotados, decadentes e desoladores. Encarou o bando de miseráveis em busca de auxílio; os funcionários autômatos em seus gestos mecânicos. Um órgão público não é diferente de um terreno infestado de zumbis, afinal.

Prestou atenção nos pobres coitados que necessitavam de ajuda. Homens e mulheres com os rostos marcados por tragédias, movidos por um único instinto comum a todos os seres vivos: sobreviver. Não os julgava, e nem poderia. Seria diferente deles? Claro que não.

Todos os animais são iguais quando precisam comer.

Súbito, novas lembranças lhe invadem o cérebro. Sua cabeça gira, cambaleia na fila. A moça de trás pergunta se precisa de ajuda. Ele a encara, olho no olho, fica assustado. Aquele semblante… seria possível? A mulher que abandonara às feras no estacionamento do supermercado? Não! Recua alguns passos, ergue a mão diante da face para ocultar a visão. Alguém pede que lhe tragam água. 

Sente um aperto no peito. A garganta está seca. Parece sufocar. Ar. Ar. Façam alguma coisa, ouve gritarem. O homem está passando mal! São vozes distantes. As pessoas se agitam. Aproximam-se dele, formam um círculo ao redor. Não, vão embora. Afastem-se! Não veem que posso matá-las? Fujam, antes que eu me transforme. Não quero fazer mal a ninguém. Por favor, vão embora daqui.

Suas pernas não aguentam. Tomba ao chão. Está trêmulo, febril. Recolhe-se em posição fetal, começa a chorar. Soluça igual a uma criança.

Afastem-se de mim, antes que seja tarde…

 

Estou mergulhado no breu absoluto. É uma espécie de túnel. Talvez um canal subterrâneo de esgoto. Trombo nas paredes, tropeço em desníveis no chão. Sigo um pequeno ponto de luz bem adiante.

Ouço pequenos guinchados. São acompanhados do cheiro de carne. De sangue. Ratos! Dezenas, até centenas deles. São tantos, que me formam um tapete em volta dos pés. Atiro-me sobre eles sem a menor hesitação.

Agarro-os aos punhados, todos os que minhas mãos conseguem apalpar. Eles me mordem com seus dentes afiados, mas não me incomodo. Devolvo-lhes as mordidas, arrancando-lhes as cabeças, as patas, os rabos, devorando-os num estado de frenesi.

Engulo de uma sentada tantos quanto possa. Quase não mastigo, são ratos pequenos, desnutridos, desolados pela escassez de alimentos. 

Faço a festa! É um banquete inigualável.

 

— Eu não tenho como ajudar se o senhor ficar aí, apenas sentado, sem me falar nada — disse o psiquiatra, após cinco minutos de silêncio.

O Paciente Zero moveu as pupilas em direção a ele. Em seguida, voltou a olhar para dentro de si. Finalmente, abriu a boca.

— Tem essa mulher… não lembro quem era. Mas, toda hora, vejo o seu rosto, sua expressão de pavor, os olhos em súplica, jogada ao chão, estendendo os braços pra que eu não a abandone… se eu pudesse voltar atrás.

— Será que adianta se martirizar pelo que não pode ser desfeito?

— Talvez não adiante, mas também não impede que eu me sinta culpado. E as coisas que eu fiz depois… essas visões que me atormentam. Os detalhes na expressão de espanto de cada pessoa que ataquei, cada vida que destruí, cada sonho que eliminei. Merda, como fui capaz de fazer aquelas coisas?

— Ambos sabemos que não era o senhor. Pelo menos, em qualquer nível de consciência. Era uma doença, e todos afetados por ela agiam fora de si. Completamente. Não se cobre por tais coisas. É preciso seguir em frente.

— Não duvido de suas boas intenções, mas falar é um tanto simplório, doutor. Parte de mim, o que me sobrou da razão, sabe que não adianta ficar estagnado, revivendo isso. Mas saber — ou melhor, querer — não é poder. De toda forma, os pensamentos persistem, milhares deles, correndo pra lá e pra cá no meu cérebro, remorsos, arrependimentos, alucinações, privação de sono. Dizem que tenho sorte pela chance de viver uma segunda vez, mas a real é que só tenho esperado o tempo passar. Não deixei de me sentir um zumbi, pra falar a verdade. A diferença é que agora eu não machuco as pessoas.

— Eu vou prescrever alguns medicamentos que podem lhe ajudar a controlar a ansiedade, as alterações de humor. Servem, ainda, pra agir conforme o lado racional em detrimento do emocional. Vou receitar algo pra combater a insônia, também.

— E a culpa?

— Não entendi.

— Existe remédio pra isso, doutor?

 

Luzes intensas acabam por me cegar. Não incomodam, mas não permitem que eu enxergue nada. Estou desorientado, não sei para qual lado seguir. Gritos. Agitação. Estampidos. Posso sentir o aroma da carne humana. Fresca. A impossibilidade de saber de onde vem estimula minha fúria.

Fome. Fome. Fome.

As vozes estão cada vez mais próximas. Não entendo o que dizem, mas sei que representam comida. Essas luzes! O que está acontecendo?

Algo é jogado sobre meu corpo. Limita-me os movimentos. Não consigo me desvencilhar. Fui capturado por uma rede. Sou arrastado e trancafiado numa jaula.

A essa altura, debato-me com extrema violência. Meus grunhidos soam mais animalescos do que nunca. Rolo de um lado para o outro na cela. Desejo passar por entre as grades e me atirar sobre aquelas silhuetas, abocanhá-las, comê-las.

Então, acertam-me um dardo no meio da testa.

A visão é obscurecida. O corpo fica letárgico. A raiva se atenua.

A fome já não me perturba.

Morri?

 

O Paciente Zero estava deitado na cama, mas já fazia oito noites que não dormia. Ouvira dizer que uma pessoa só aguenta onze noites privada de sono. Conseguiria ultrapassar esta marca? Não, porque já não aguentava mais. Já não se aguentava mais.

Olhou para as embalagens de remédio no bidê ao lado. Tarjas vermelhas e pretas. Não tocara em nenhum deles, contrariando as indicações do psiquiatra. E se tomasse todos de uma vez só? Dormiria finalmente? O sono eterno, talvez?  

Que se foda, pensou. Não vou me matar com essa merda.

Decidiu subir ao topo do prédio, gostava da vista noturna da cidade. Não era o lugar mais bonito do mundo, mas, por alguma razão, não se sentia perdido quando sorvia aquele ar, ainda livre de poluição, e estufava o peito. Deus, não havia se dado conta de como era bom respirar. Oxigênio, o elemento essencial para os seres. Até mesmo para os zumbis. Não, não pensaria nisso. Não agora. Gostaria de preservar aquele raro momento de paz. Sem corpos dilacerados, rostos apavorados, gritos desesperados.

Trepou no parapeito, equilibrando-se com esforço. Era bastante arriscado. Uma tremenda imprudência, na verdade. Sabia disso. Mirou a rua lá embaixo. Oito andares o separavam do asfalto. Como não sentia os efeitos da vertigem? Lembrou-se que, na vida anterior, morria de medo de altura e…

Espera. Lembrou-se da outra vida?

Seria possível que a memória…?

Estremeceu.

Resolveu descer logo do parapeito, antes que novas recordações lhe despontassem no cérebro.

Talvez estivesse mesmo na hora de tomar aqueles remédios para dormir…


Confira uma análise detalhada desta história em forma de podcast feita pela IA:


Capa da edição número 1 da antologia Insólito! Assombroso! Inimaginável!, mostrando algumas ilustrações em preto e branco de cenas grotescas.

Este conto foi originalmente publicado na edição número 1 da antologia “Insólito! Assombroso! Inimaginável!”, do selo editorial independente Ficções Pulp!, e se encontra disponível na Amazon por um preço simbólico. Confira!

“O Paciente Zero”: maravilhosa trama – e perspicaz o uso de dois tipos de narradores. O Inter é como o protagonista tem uma dubiedade entre as lembranças e o real nível de consciência. O tipo de texto que faz a mente viajar e mergulhar em milhões de possibilidades. Adorei.

Henggo

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