Os Tempos, Eles Mudaram

por Diego Quadros
24 minutos de leitura

(Flautas! Tamborins! Rock?)

The line it is drawn

The curse it is cast

The slow one now

Will later be fast

As the present now

Will later be past

The order is rapidly fadin’

And the first one now will later be last

For the times they are a-changin’

Bob Dylan, “The Times They Are A-Changin'”

31 de março de 1964

Era o último dia de Cláudia no Brasil, e decidíramos aproveitar meu aniversário com uma programação diferente. Já anoitecia quando saímos do Festival de Expressionismo Alemão da faculdade de Artes.

— Não sei de onde vem tanto gosto por esses filmes mudos antigos, Dyego — disse ela, sacudindo a cabeça. — Poxa, é difícil manter a concentração quando os atores não falam. Tá na hora de deixar de ser tão quadrado. Seja prafrentex.

— Pois eu não vejo problema nisso, ora — respondi, sorrindo com sua honestidade peculiar. — Além do mais, O gabinete do Doutor Caligari é uma verdadeira aula pra estudantes de fotografia. Olha a maneira como eles trabalham a artificialidade do cenário, por exemplo, ou o uso maior do escuro do que dos claros pra criar efeitos de chiaroescuro e estabelecer uma atmosfera de mistério e mal-estar. Pra não falar nos efeitos dramáticos dos close-ups dos personagens. Não que eu desmereça esses filmes franceses que você tanto gosta, mas o cinema tem história antes da Nouvelle Vague…

— Eu sei. Só que os tempos… eles mudaram, maninho. E suponho que ambos concordamos que os filmes modernos franceses estão pra uma estudante de moda como os alemães de 40 anos atrás pra um aspirante a fotógrafo. Falando nisso, eu ainda não me conformo com você não ter visto sequer de longe a Brigitte Bardot. Ah, se eu já estivesse por aqui em janeiro.

— Você não ia chegar nem a dois quilômetros dela, Cláudia. A mulher vivia cercada por uma multidão.

De implicância, ela me deu um leve empurrão.

— Claro que eu sei disso, seu bobo! Escuta, vamos voltar pra sua casa pra preparar aquele jantar especial em comemoração e já aproveito pra te dar meu presente.

Made in USA?

Yeeees.

Tomamos o táxi logo em seguida. Sentamos juntos, e um tanto apertados, no banco traseiro do Fusca.

— Veja, um carango alemão pro fã do Expressionismo — caçoou.

— Maninha, o estrangeiro te deixou lelé da cuca — falei, após uma breve gargalhada. — E como vão as coisas por lá?

— Bem agitadas, mas solitárias também. Dá uma saudade de casa…

— Sempre resta a possibilidade de voltar. O Brasil vai continuar no mesmo lugar.

— Pouco provável que isso aconteça. Penso em sair da Flórida direto pra Nova Iorque depois de me formar. É bem mais fácil que eu ganhe a vida por lá, como estilista, do que no Rio de Janeiro.

— Por falar em Nova Iorque, li mês passado nos jornais que esses cabeludos britânicos que não param de tocar nas rádios andaram causando furor.

— Os Beatles?

— Suponho que sim. Não me ligo muito nessas culturas de massa estrangeiras, cê sabe que meu negócio é música brasileira.

— Sim, eu já percebi, seu boko-moko. Mas é verdade. Eles chegaram arrasando por lá. Apareceram até no show do Ed Sullivan.

— Quem?

— É um programa de auditório bem popular, transmitido pra todo o país pela televisão. Gosto das músicas deles. Aquela em que cantam que querem segurar na mão da garota é tão fofa. E o vocalista deles é um pão.

— Sei…

— Aliás, de certa forma, eles têm a ver com seu presente, mas não vou falar mais pra não estragar a surpresa.

It’s a restless hungry feeling

That don’t mean no one no good

When ev’rything I’m a-sayin’

You can say it just as good

You’re right from your side

I’m right from mine

We’re both just one too many mornings

An’ a thousand miles behind

Bob Dylan, “One Too Many Mornings”

Deixei os quatro ou cinco pedros que me restavam das economias na mão do taxista. Ficaria duro pelo resto da semana, mas não podia ter feito uma garota transada como Cláudia, agora moradora da gringa, voltar apertada num ônibus com um pé-rapado do lado. E eu já estava habituado a viver por dias sem tutu, de qualquer maneira.

Ela passaria aquela noite no meu quitinete. Na manhã seguinte, tomaria o avião de volta aos Estados Unidos, então suas bagagens já se encontravam num canto do muquifo. Enquanto eu preparava os ingredientes pra única janta que sabia fazer, carne assada no forno, e eu quase nunca tinha carne na geladeira, daí a ocasião especial de aniversário, ela se dirigiu aos seus pertences e retirou um LP de uma das malas.

— Eis o seu presente de aniversário, Dyego. Podemos já aproveitá-lo esta noite, o que acha?

Trocamos um abraço carinhoso e eu dei um beijo em seu rosto. Em seguida, tomei o álbum nas mãos. A capa era uma fotografia em preto e branco um tanto estranha, mas bastante artística, na minha opinião. Tratava-se do retrato, quase um close-up, tirada de um ângulo levemente contraplongée, de um rapaz que desviava os olhos da lente. Sua expressão era sisuda, não exatamente mal-humorada. Circunspecta talvez fosse o termo apropriado. Do canto superior esquerdo até aproximadamente o centro da capa, projetava-se uma tipografia preta anunciando: The times they are a-changin’ Bob Dylan.

— Tudo bem que não sou especialista em música estrangeira, mas este não faço a menor ideia de quem seja — comentei, medindo o tom da voz pra não parecer que desprezava o regalo.

— É a sensação do momento no cenário artístico americano.

— Ué, mas não eram os quatro britânicos? Como é mesmo o nome?

— Não, os próprios Beatles disseram que Dylan aponta os caminhos. Veja, os Beatles são pop music, que não param de tocar nas rádios, como você mesmo observou. Bob Dylan é de outra vertente. Trata-se de folk music americana, um artista cujas canções possuem letras elaboradas, quase poesias com a linguagem do povo. Seria o mesmo que comparar, sei lá, É proibido fumar, do Roberto Carlos, com esses cantores que você gosta, como… como…

— Jorge Ben?

— Sim, acho que sim.

— Cê tá me dizendo que essa cara aqui do disco faz letras mais elaboradas do que Jorge Ben?

— Não tenha dúvidas disso. Me passa ele aqui, vou pôr a tocar pra você prestar atenção e concluir por si mesmo.

I glanced at my guitar

And played it pretendin’

That of all the eyes out there

I could see none

As her thoughts pounded hard

Like the pierce of an arrow

But the song it was long

And it had to get done

Bob Dylan, “Eternal Circle”

Enquanto Cláudia punha o vinil a rodar no toca-discos, eu botei a carne no forno e abri o vinho que ela roubara da adega na casa dos pais. A primeira música iniciava de forma crua, sem introduções prolongadas, e consistia apenas numa batida de violão no ritmo 3/4, de apenas um compasso, seguida por uma voz fanha que clamava pra que as pessoas se juntassem, por onde quer que andassem, porque os tempos estavam mudando. Na sequência, uma gaita tocada de forma precária, sem a mínima técnica aparente.

— Vê a construção poética dos versos? — perguntou Cláudia. — É praticamente um hino de nossa geração. É política, é social, é popular, é literária, é linda.

O que eu achava, de fato, pelo menos numa primeira impressão, era de que se tratava da canção mais estranha que já tinha ouvido, cantada por alguém que sequer possuía voz pra cantar e mal dominava os instrumentos que tocava. Mas também era fato que ela me provocava um efeito desconcertante, no bom sentido do termo. A música basicamente seguia na mesma, com estrofes que alternavam os alvos da conclamação do narrador, cujo refrão era sempre o verso dizendo que os tempos mudavam, entremeadas pelos breves solos de harmônica.

— Olha como ele arrasa com os escritores e críticos que profetizam com suas penas — comentava ela, quase em êxtase. — Pois sim, o perdedor de agora depois vai vencer. Sim, venham senadores, deputados, há uma batalha enfurecida lá fora. Mães e pais de todo o país, não critiquem o que vocês não entendem, seus filhos e filhas não vão obedecer mais.

Enquanto servia o vinho, não pude evitar achar graça, com o espírito repleto de ternura, da maneira como ela assumia a voz da canção e erguia os braços com os punhos cerrados, expressando em gestos o tom de protesto da letra. 

— O presente de agora será o passado depois — murmurava, apanhando o copo de minhas mãos, traduzindo simultaneamente como se eu não entendesse patavinas de inglês. — A ordem está se apagando rapidamente. O primeiro, agora, será o último depois, porque os tempos, eles estão mudando.

Finalmente, quando a primeira faixa acabou, ela sentou-se à mesa.

So? — quis saber.

So what?

— O que achou?

— Eu… não tenho uma opinião formada ainda. Preciso escutar mais. Mas cê tem razão, em nada lembra esses tais de Beatles ou mesmo o Elvis. Não vou nem mencionar nosso Bob Charles…

You looked for work and money

And you walked a rugged mile

Your children are so hungry

That they don’t know how to smile

Bob Dylan, “Ballad of Hollis Brown”

A canção seguinte iniciava tão crua e direta como a anterior. Falava de um personagem logo na abertura, um sujeito chamado Hollis Brown, que morava fora da cidade, com mulher e cinco filhos, num casebre caindo aos pedaços. Bastaram-me estes poucos versos, somados aos da primeira canção, pra já ter certeza de que estava prestes a escutar um disco completamente diferente de tudo que já ouvira antes.

— Quantos anos tem esse sujeito?

— O mesmo que você. Dois patinhos na lagoa.

— Vinte e dois? Cê tá de brincadeira?

Ela balançou a cabeça. Era inacreditável. Eu, com minhas pouco mais de duas décadas de vida, mal me sustentava como assistente de fotógrafo e aquele rapaz já escrevia canções feito um poeta revolucionário, um artista das massas.

— Perceba como essa letra é trágica — disse ela, após tomar um gole do vinho. — Seus filhos estão com tanta fome que não sabem nem sorrir. Os olhos do seu bebê parecem doidos, os ratos pegaram sua farinha… nossa, a miséria é tão triste. Seus bolsos vazios te dizem que você não tem amigos…

— Ei, com essa parte eu me identifico — interrompo, tentando amenizar o clima pesaroso instaurado. Cláudia parece não dar bola.

— A história piora — responde. — Preste atenção. Os seus filhos choram mais alto agora, isso te martela o cérebro. Os gritos da sua mulher te perfuram com a chuva pesada e suja. Não tem água no seu poço. Você gastou o último dos dólares em sete balas de carabina. Seus olhos se fixam na arma pendurada na parede.

— Eu não tô gostando de onde isso tá nos levando…

— Pshiit! — Ela faz, levando o indicador contra a boca. — Seu cérebro está sangrando e suas pernas não aguentam mais. Seus olhos se fixam na arma que você já tem na mão. Há sete brisas soprando em volta da porta do casebre. Sete tiros ressoam como o troar martelante do oceano. Há sete pessoas mortas numa fazenda em Dakota do Sul. Em algum ponto bem distante, sete novas pessoas nasceram.

Não é exagero dizer que fiquei chocado ao término dos cinco minutos da canção.

— Nossa, eu nunca escutei algo parecido num disco. E estamos recém na segunda faixa.

— Acho interessante que essa balada é narrada na segunda pessoa — acrescenta Cláudia. — É como se um vínculo fosse forjado imediatamente entre nós, os ouvintes, e o personagem desse “conto”. É até irônico, como se os únicos que se importassem com a situação fôssemos nós.

— E estamos impotentes pra ajudar. Separados dele assim como estamos separados uns dos outros numa sociedade de massa. É tão… crua, visceral e perturbadora. Mas, ao mesmo tempo, nos atinge no fundo. O tipo de coisa que jamais tocaria nas rádios. A começar pela duração. Deve ter uns dois minutos a mais do que essa pop music, como você disse, que predomina nas paradas.

— E você ainda não ouviu a próxima. Tem sete minutos! Com Deus aos nosso lado, é o nome.

— Vixe — protestei. — Cântico religioso? Era bom demais pra ser verdade…

— Nem perto disso, Dyego. Nem perto disso.

So now as I’m leavin’

I’m weary as Hell

The confusion I’m feelin’

Ain’t no tongue can tell

The words fill my head

And fall to the floor

If God’s on our side

He’ll stop the next war

Bob Dylan, “With God on Our Side”

Enquanto eu nos servia mais vinho, a faixa seguinte iniciou com uma breve linha de gaita acompanhada do batida seca do violão. Eu percebia que o álbum todo seria com apenas estes dois instrumentos acompanhando a voz anasalada daquele tal Bob Dylan. Mas a ideia me agradava. Não me soava repetitivo e tampouco monótono, talvez justamente pela força de suas letras.

Os versos desta música eram um verdadeiro tapa na cara da sociedade americana, com sua tendência em acreditar que Deus estava do lado deles e contra todos que discordassem de seus valores. Cada frase contestava a moralidade das guerras travadas e as atrocidades cometidas pelo próprio país do cantor. Eram mencionados inúmeros eventos históricos, como a Guerra Hispano-Americana, o massacre dos nativos norte-americanos no século XIX, a Guerra Civil, as Guerras Mundiais, o Holocausto, a Guerra Fria e a traição de Jesus por Judas Iscariotes, e cada estrofe finalizava “com Deus do seu lado”.

Cláudia se manteve em absoluto silêncio durante o tempo de execução da faixa, apenas bebendo o vinho fino roubado da adega do pai e olhando pra um canto qualquer do nada, concentrada nas palavras que se desprendiam dos alto-falantes.

— A próxima é a canção mais curta do LP, não chega nem a três minutos, mas é lindíssima e comovente — observou. — Foge completamente do cunho social das ouvidas até agora. É muito mais subjetiva, tem um quê de melancolia romântica. One too many mornings, não sei nem como traduzir isso.

— Uma manhã a mais, talvez?

— É, talvez. É difícil traduzir poesia.

Eu pensei que poético era o lindo dedilhado que servia de base pra música. Era a primeira, aliás, que não iniciava com batidas secas nos acordes, e prezava uma harmonia construída por linhas melódicas. A letra construía imagens interessantes de um narrador que contemplava o latido dos cães na rua e o quarto onde seu amor e ele antes haviam deitado, e a calada da noite sendo estilhaçada pelas vozes dentro de sua cabeça. Era provavelmente um lamento sobre o rompimento da relação, mas eu não saberia afirmar com certeza. Cada estrofe finalizava com o bordão: “Estou uma manhã a mais e mil quilômetros atrás”, até onde meu inglês me permitia decifrar o sentido dessas palavras ambíguas.

— A próxima é a última do lado A. — Cláudia avisou. — Retornamos novamente ao chão do engajamento social e da contestação dos valores americanos.

— Qual o título dessa?

North country blues. É narrada por uma mulher que vê sua cidadezinha, cuja economia depende da mineração de ferro, decair até virar um lugar quase fantasma. É outra letra cheia de tragédias: perda do pai, do irmão, mortos na atividade; perda do marido pro alcoolismo, dos filhos pro êxodo urbano. Muito triste.

— Blues do Norte… interessante. Um ritmo genuíno dos Estados Unidos.

— Sim. Eu não sei muito da vida dele, mas parece que Dylan é um grande musicologista. Percebe-se que essas canções trazem a herança das raízes não só americanas como europeias, as velhas baladas inglesas e irlandesas.

Olhei pra Cláudia com admiração.

— Maninha, tenho a impressão de que você anda aprendendo muito mais coisas na terra do Tio Sam do que simplesmente desenhar vestidos e casacos.

— Eu tenho conhecido um pessoal que se amarra nessas coisas no circuito universitário — respondeu, um pouco constrangida. — De tanto ouvir as conversas, a gente acaba aprendendo algumas coisas.

— E eu que pensava que você só se amarrava nesse tal de rock and roll e em pop music

— Não é verdade. Você sabe que eu gosto de músicas francesas também — protestou, sorridente.

Brindamos.

— A você! — Ela frisou. — Ao Dylan! E aos tempos, que estão mudando!

— E aos expressionistas alemães! — acrescentei.

Gargalhamos.

Today, Medgar Evers was buried from the bullet he caught

They lowered him down as a king

But when the shadowy sun sets on the one

That fired the gun

He’ll see by his grave

On the stone that remains

Carved next to his name

His epitaph plain:

Only a pawn in their game

Bob Dylan, “Only a Pawn in Their Game”

Enquanto eu retirava a carne do forno e servia a mesa pro nosso jantar, Cláudia se encarregava de trocar o lado do disco.

— Sabe, se eu fosse músico, me dedicaria a tocar flauta e tamborim — falei.

— Flautas e tamborins… no rock?

— Bem, eu não tocaria exatamente rock, você sabe. Eu faria algo mais como música brasileira e também do mundo. Como esse cantor papo-firme aí do disco que você me deu de presente.

— Bob Dylan é ou não é daqui, ó? — perguntou ela, segurando o lóbulo da orelha com a ponta dos dedos.

Okay, você venceu — concordei. — Esse cantor é o tal.

— Podiscrê, maninho!

A música de abertura do lado B estava na metade quando começamos a desfrutar o jantar.

— Outra canção de protesto, Cláudia?

— Sim, uma das duas do disco que se baseiam em fatos reais. Em assassinatos acontecidos no ano passado por motivos de racismo. Essa é Só um peão no jogo deles.

— É contundente, de fato um libelo contra o racismo, mas me incomoda ele eximir o assassino da culpa, afirmando que ele é só um peão no jogo dos poderosos.

— Sim, verdade. Há alguns meses, aconteceu uma marcha em Washington em favor dos direitos civis. Foi liderada por um advogado e pastor negro, Martin Luther King. Reuniram milhares de pessoas nessa manifestação, e ela foi transmitida pela televisão. Nossa, nunca vi tanta gente reunida antes, Dyego. Bob Dylan estava lá e cantou essa música pra uma audiência basicamente de negros. Foi aplaudido, mas sem muito entusiasmo. Talvez por essa razão que você falou.

— Mas é uma canção bem-intencionada, de qualquer maneira. E corajosa. Não ouvimos músicas assim aqui no Brasil, por exemplo. Nem mesmo de artistas negros.

— E nos Estados Unidos, tampouco. Com exceção de Dylan, é claro.

Well, if you, my love, must think that-a-way

I’m sure your mind is roamin’

I’m sure your heart is not with me

But with the country to where you’re goin’

Bob Dylan, “Boots of Spanish Leather”

Oh, God! — exclamou Cláudia, largando o garfo sobre o prato enquanto iniciava a próxima canção. — Botas de couro espanhol. Essa é tão lastimosamente linda!

— É outro belo dedilhado no violão.

— Não, seu goiabão. Falo da letra. Repare. É contada em forma diálogo entre um casal de amantes. Cada estrofe representa a voz de um dos personagens. A moça lamenta o quanto está triste por partir pra outro país na manhã seguinte e pergunta se tem algo que possa enviar pra ele de lá, do outro lado do oceano.

— Hmm. Isso não te lembra de nada?

— A nossa situação?

Yeees.

— Ah, mas nós não estamos gamados um no outro.

— É, acho que não.

— Ouça, agora, as estrofes finais. A narração muda, ele conta que recebeu uma carta onde ela afirma que não sabe mais quando irá retornar. Já se percebe que não vão se encontrar nunca mais. E nas últimas linhas, tristemente conformado, ele fala consigo mesmo, como se estivesse mandando recado pra ela: tem, sim, uma coisa que você pode me mandar – botas espanholas de couro espanhol. So beautiful!

— Tem uma coisa que você pode me mandar da Flórida, Cláudia.

— O quê? — perguntou ela, com ares de bode em canoa.

— Botas de couro de jacaré.

Gargalhamos outra vez.

— Talvez eu te envie uma bolsa de couro de jacaré. Tenho me interessado por design de bolsas no curso de moda.

— Ei, gostei da agitação dessa música — observo, referindo-me à faixa seguinte. — É a mais agitada até agora. A única, pra falar a verdade.

Ah, os inimigos vão se erguer

Com o sono ainda nos olhos

E pular da cama e achar que estão sonhando

Mas irão se beliscar e guinchar

E saber que é real

Na hora em que o navio aportar

Então eles erguerão as mãos

Dizendo: “aceitamos suas exigências”

Mas nós vamos gritar da proa: “seus dias chegaram ao fim”

E como a tribo do faraó

Eles vão se afogar nas águas

E, como Golias, eles serão conquistados

Bob Dylan, “When the Ship Comes In”

— Essas imagens que ele constrói com as palavras são maravilhosas — diz Cláudia. — Eu não faço ideia sobre o que é a canção. Parece uma espécie de alegoria épica sobre a derrota dos poderes opressores constituídos.

— Me lembra uma canção alemã com letra de Bertolt Brecht. Seeräuber-Jenny. Algo como Pirata Jenny, acho. Faz parte de uma ópera que não lembro o nome agora, li num livro sobre…

— Já sei, o Expressionismo Alemão.

Ri e balancei a cabeça.

— Não exatamente. Mas, enfim. Na ópera, a pirata Jenny sonha com a destruição de todos os seus inimigos por um navio misterioso. Eu não duvido que esse tal Bob Dylan seja leitor de Brecht. Leitor ávido, não restam dúvidas de que é. E um sujeito de mente tão aberta que imagina seu navio aportando e arrasando contra os neófobos. No caso, os inimigos.

— É uma linda interpretação, essa.

— Não. É só uma interpretação. Posso estar errado.

— Difícil haver uma certeza em versos tão alegóricos, metafóricos como tais.

— E que canção é essa que inicia agora?

— É a outra baseada num caso real de assassinato que te falei. A morte solitária de Hattie Carroll. É curioso que Dylan dá o nome real do assassino e da vítima. Já na primeira linha, como você pode ouvir, ele dispara: “William Zanzinger matou a pobre Hattie Carroll com uma bengala que rodava em volta do anular com anel de diamante”. Zanzinger, pelo que sei, é herdeiro de uma rica família do ramo do tabaco, e matou Carroll numa reunião da alta sociedade de Baltimore num hotel, enquanto estava podre de bêbado. Ficou preso por pouco tempo, sendo liberado sob fiança.

— Eu gostei do refrão, se é que se pode chamar os versos finais das estrofes de cada canção de refrões. “Mas vocês que filosofam a desgraça e que criticam todos os medos, afastem esse trapo do rosto. Agora não é hora dessas lágrimas.”

— Sim, como você disse a respeito da outra, são palavras contundentes. Imagine os efeitos delas na sociedade consumista e conservadora americana.

— Por falar nisso, eu não sei por quanto tempo vou me conservar sóbrio. O vinho já está fazendo efeito.

Ah, cada mulher que eu já toquei

Eu não toquei pra machucar

E cada mulher que acabei ferindo

Não feri consciente

Mas pra continuar como amigos

E fazer as pazes

Você precisa de tempo e de recolhimento

E como os meus pés são agora velozes

E apontam pro oposto do passado

Eu digo adeus e desço a rua

Bob Dylan, “Restless Farewell”

Cláudia abriu um largo sorriso, com uma verdade carismática tão peculiar a ela. Como me fascinava.

— Eu também já estou mais pra lá do que pra cá. Mas chegamos na última música. Restless Farewell. Ou…

Adeus intranquilo. Gostei. Novamente lembra nossa situação.

— Ei, eu nem parti ainda e você fala como se eu nunca mais fosse voltar.

— Vou lavar a louça antes que caia no sono.

— E eu vou me trocar. Jura que não olha pra trás?

Nooo. Juro que não tiro os olhos dos pratos.

Devia ser perto da meia-noite quando fomos deitar. E eu não vou entrar em detalhes do que aconteceu naquela noite, pois a verdade é que não aconteceu nada.

1° de abril de 1964

Levantei do sofá ainda meio enjoado pela ressaca do vinho. Olhei o relógio, eram 9 horas. Cláudia tinha menos de duas horas pra fazer o check-in e alçar voo de volta aos Estados Unidos. Cambaleei em direção ao colchão no canto do quitinete e a sacudi pelos ombros.

Acorda, Cláudia. Vamos, levanta. Estamos bem atrasados já.

O bom era que ela tinha o sono leve e recuperava fácil a consciência.

— Nossa, vou tomar um banho rápido. Você arruma a bagagem pra mim?

— Pode deixar.

Saí atrás de Cláudia, tentando me equilibrar nos degraus da escadaria do prédio com as quatro malas que carregava debaixo do braço.

— Escuta — falei. — Eu… eu não tenho grana pro táxi.

— Bobo! Deixa comigo. Você já está ajudando demais carregando essas geringonças pra mim.

— Bem, já que você insiste…  — brinquei.

Na rua, o cenário era completamente diferente do que havíamos deixado na noite anterior. Soldados do exército circulavam por todos os lados. Ao longe, podíamos ver tanques de guerra bloqueando alguns acessos ou andando em fila pra algum lugar.

— Nossa, o que é isso? — perguntou Cláudia. — Entramos em guerra da noite pro dia?

— Eu… não faço… a menor… ideia.

Apanhamos um táxi a alguns metros do meu prédio. Desta vez, sentei na frente, pra que as malas de Cláudia lhe fizessem companhia no banco traseiro do compacto Fusca.

— Escuta, amizade — falei ao taxista. — O que está acontecendo?

— São os militares — respondeu. — Derrubaram o Jango na madrugada. Ele já não é mais o presidente do Brasil.

— O senhor tem certeza disso? — perguntou Cláudia.

— Tá dando no rádio a todo momento. Parece que ele já até fugiu pro Rio Grande do Sul.

Pedimos pra ligar o rádio e permanecemos calados por todo o caminho, escutando as notícias e os editoriais da imprensa, que apoiava a derrubada de João Goulart. Era difícil de acreditar.

Quando finalmente chegamos ao aeroporto, ele estava cercado por forças da Aeronáutica. Foi preciso que Cláudia explicasse em detalhes sua situação a fim de que nos liberassem pra entrar. No  balcão da companhia aérea, fomos avisados de que o voo poderia atrasar face os motivos óbvios. Cláudia comprou um jornal na banca pra matarmos o tempo e nos inteirarmos do assunto. O Globo exibia um editorial com o título: “Ressurge a democracia!”

— Gente, o País virou de cabeça pra baixo em tão pouco tempo? — ela comentou.

— Sabe o que isso me lembra?

— O teu presente de aniversário?

Balancei a cabeça em afirmação.

— Os tempos estão mudando mesmo…

— No fim das contas, acho que eles estão em constante mudança, Dyego — respondeu ela, abraçando-se a mim. — Eu vou sentir sua falta. E vou ficar preocupada com você.

— Relaxa. As coisas por aqui logo se ajeitam. Em questão de meses, tudo já deve ter voltado ao normal.

***

Nunca mais nos encontramos. Escrevo esta história em 31 de março de 2021: meu aniversário de 79 anos. Bob Dylan, aliás, também é vivo e completa 80 em pouco menos de dois meses. Cláudia, eu não faço a menor ideia.

Nos Estados Unidos, soube que ela acabou se mudando mesmo pra Nova Iorque e prosperou no ramo de bolsas de marca. No Brasil, engajei-me com movimentos universitários contra a ditadura instaurada pelos militares, fui preso, torturado e obrigado a me exilar na Alemanha, onde completei meus estudos de fotografia e cinema, e me tornei amigo de Wim Wenders, Werner Herzog e Rainer Werner Fassbinder. Quando voltei, com a anistia de 1979, o Brasil já havia se transformado novamente. A ditadura estava mais branda, chegando à míngua nos anos de Figueiredo.

Às vezes, me flagro pensando naquela noite de 1964, e transbordo os olhos de lágrimas, movido por sentimentos de doce tristeza e melancólica alegria. Era impossível prever que nossas vidas tomariam caminhos opostos àquela época. E, se eu suspeitasse, talvez tentasse aproveitar mais os dias em que passamos juntos. Mas como valorizar o presente quando ainda somos tão jovens?

Bob Dylan estava certo: os tempos mudavam mesmo. E Cláudia também: no fim das contas, eles estão em constante mudança.


Confira uma análise detalhada desta história em forma de podcast feita pela IA:


Capa da antologia "Os Tempos, Eles Mudaram", mostrando uma ilustração de Bob Dylan caracterizado conforme a época da turnê Rolling Thunder Revue.

Este conto foi publicado originalmente na antologia “Os tempos, eles mudaram – uma singela homenagem aos 80 anos de Bob Dylan!”, lançada pelo selo editorial independente Ficções Pulp! A obra está disponível por um preço simbólico na Amazon, caso desejem conferir.

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