Meu Amigo da América

por Diego Quadros
11 minutos de leitura

Se preferir, você pode ouvir o conto narrado por este que vos escreve!


Um amontoado de pedaços de concreto, cabos de aço retorcidos, tijolos fragmentados e poeira. Muita poeira. Ruínas do que antes fora um prédio e agora servia de abrigo naquela localidade inóspita. O nome do lugar? Não importava. Qualquer que fosse a cidade em tempos de outrora, não passava atualmente de uma terra devastada, um cemitério onde os esqueletos das construções se projetavam do solo como mortos que tiveram suas sepulturas profanadas. Selva de pedra? Não. Uma cordilheira de destroços.

O anão empilhou um caixote sobre o outro a fim de espiar por uma brecha nos escombros. Atrás de si, o americano fazia o que era de praxe: ouvia a mesma música dezenas de vezes. Uma canção de um artista de voz fanha que falava em chuva pesada prestes a desabar. O anão não sabia mais do que meia dúzia de palavras em inglês, mas, pelos gestos do americano, deduzia que a hard rain’s a-gonna fall significava aquilo mesmo: chuva pesada prestes a devastar a vida no solo. Era um profeta, o tal cantor, que tivera essa epifania exatamente um século antes da desolação.

Mas ele não se importava em ouvir sempre a mesma canção. Ele sequer se importava em conviver com o americano. Ninguém mais gostava de americanos naquilo que antes fora o Brasil. Passara-se um quinquênio da guerra, mas as lembranças de os brasileiros terem sido abandonados pelos aliados do norte da América ainda estavam bem vivas. Caçar e matar americanos, aliás, era o esporte favorito dos que sobreviveram ao cataclismo. Num país onde a vida animal fora quase que completamente extinta, atirar na cabeça de ex-soldados americanos que ainda restavam pelo Brasil pós-apocalíptico ajudava a atenuar a insanidade.

O anão, entretanto, não guardava rancor. Já vivia na merda antes da guerra, então, para ele, não fazia diferença se o Tio Sam dera um chute na bunda dos brasileiros quando a situação se tornara complicada. Em realidade, até se identificava com aquele americano excluído, odiado, que se esgueirava entre as sombras para sobreviver. E também se sentia seguro na companhia de um ex-combatente cujo principal talento era a capacidade de inventar apetrechos úteis a partir de quinquilharias imprestáveis, como os trajes para a radiação, por exemplo. Ambos se protegiam, complementavam-se, ainda que só conseguissem falar através de mímica.

Fora do abrigo, era mais um dia acinzentado, como a grande maioria dos dias desde a hecatombe. Não chegava a ser um inverno nuclear, mas as mudanças climáticas se fizeram notar após a tempestade de bombas atômicas que foram derramadas sobre o território nacional. Ventos furiosos, temperatura abaixo da média, céu coberto por nuvens escuras e espessas, flora insuficiente para controlar a umidade e influenciar nas correntes atmosféricas. De norte a sul, o Brasil havia se tornado uma imensa e dolorosa chaga no organismo terrestre.

O anão saltou dos caixotes após se certificar de que os arredores não apresentavam sinais de ameaça. Não era incomum encontrar matilhas de cães esfomeados, prontos para avançar e devorar qualquer criatura que não fosse capaz de se defender de seus ataques. Mesmo os ratos que ele e o americano caçavam para lhes servir de alimento, às vezes, mostravam-se como terrivelmente ameaçadores. Nada, porém, que se comparasse à ameaça humana, o maior perigo naqueles tempos de sobrevivência. Fossem canibais, ladrões ou assassinos psicopatas, cruzar com homens e mulheres fora do abrigo poderia representar um grande perigo.

— Vamos, meu amigo da América — disse o anão, fazendo um gesto com a cabeça para que o companheiro se levantasse do colchão podre que servia de cama. — O perímetro parece seguro. We need water urgente.

Era algo que o anão nem precisava comentar, pensou o americano, olhando para os baldes em que estocavam a água. Estavam vazios havia dias.

Ele odiava as expedições em busca do líquido essencial para a vida em virtude do alto risco que representavam. O caminho até a fonte era longo, e demandava que atravessassem uma zona onde os níveis de radioatividade eram elevadíssimos, mesmo para os trajes de proteção de que ele e o anão dispunham. Percorrer com o máximo de velocidade a área era vital. E o amigo nanico não primava exatamente pela rapidez.

O americano deixou de lado o dispositivo eletrônico que transformara em reprodutor de músicas, ergueu-se do colchão e começou a se despir. O anão, por sua vez, também se livrou dos trapos que lhe serviam de vestuário. Analisaram o corpo um do outro. O gringo tinha as costas em carne viva, tomadas por queimaduras e bolhas provocadas pela radiação. O pequeno também não passava incólume, e seus braços e pernas já exibiam alguns tumores na pele. Eram sobreviventes e não se davam por vencidos, mas, no fundo, ambos sabiam que já estavam condenados. Se não morressem pelas mãos de outros homens, cederiam ao câncer que lentamente crescia em seus organismos.

Após vestirem os trajes de proteção, o americano guardou seu radinho num bolso externo e pendurou uma mochila recheada com garrafas vazias nos ombros. Encarregado pelas medidas de segurança, o anão tomou posse de um contador Geiger, dois revólveres artesanais (também frutos da inventividade do ianque) e uma vasilha com baratas mortas e ressecadas para degustarem quando chegassem à fonte de água. Ele depositou tudo numa pequena bolsa, que pendurou transversalmente ao seu minúsculo corpo, e gesticulou para que partissem.

Esgueiraram-se pelo túnel que abria caminho, entre os escombros, até o lado de fora. O americano, enquanto engatinhava, sentiu uma pontinha de inveja pela facilidade com que o anão se movimentava naquele ínfimo espaço, sem nem ao menos precisar se agachar.

Na rua, um leve sussurro do vento raspando pelas carcaças dos edifícios perturbou o ex-soldado estrangeiro, que imediatamente ligou a música no seu dispositivo de som. O volume estava relativamente alto, e o anão, com os lábios crispados, sinalizou para que ele abaixasse o áudio antes que atraísse visitantes indesejados. Além disso, fazia-se necessário escutar os ruídos de alerta do contador Geiger, pois naquela cidade-fantasma, como em todas as outras, os níveis de radiação poderiam explodir ao virar de uma esquina.

O pequeno tomou a dianteira, empunhando o contador. Percorreram boa parte do caminho com o aparelho emitindo alertas discretos, nada fora do normal.

Do alto, eram acompanhados por aves carniceiras, os urubus miseráveis que vinham de terras estrangeiras atraídos pelo cheiro de morte daquele imenso pedaço de terra moribunda. Valia a pena lutar por uma vida miserável no Inferno? Não, eles sabiam que não valia. Mas seus instintos de autopreservação impediam-nos, o anão e o americano, dois em meio a tantos condenados, de entregar os pontos.

Ao chegarem no limite para Chernobyl, como chamavam a zona de altíssima radioatividade, o ponteiro do contador Geiger sacolejou freneticamente. Costumavam seguir pelo acesso principal, uma antiga avenida ladeada por arranha-céus de fachadas decrépitas e preteadas pelo calor das bombas de outrora. Poucos eram os minutos de que dispunham para cruzar as centenas de metros da via até que a pele começasse a arder em razão das partículas alfa, beta, gama ou seja lá o que fossem os causadores de seus cânceres.

Respiraram por alguns segundos antes de adentrarem o território inóspito. O visor de seus trajes embaçara com a umidade do ar exalado pelos pulmões, prejudicando seu campo de visão. Então, avançaram a passos firmes e rápidos. A bem da verdade, o anão praticamente corria para acompanhar o americano.

Não havia o menor sinal de perigo nos arredores. As ruínas aparentavam o mesmo abandono ao qual estavam acostumados. Não fossem as pedras pisoteadas por seus pés, o assobio incômodo do vento entre o vão das ossadas dos prédios, o alerta ensandecido do contador Geiger e a voz fanhosa do cantor que o gringo escutava, o silêncio reinaria absoluto. No céu, as aves carniceiras permaneciam sobrevoando em círculos, criando um mórbido contraste entre sua plumagem negra e a claridade das nuvens levemente cinzas que escondiam o sol.

Quando estavam aproximadamente na metade do perímetro da Zona Chernobyl, o homenzinho resolveu checar os níveis de radiação no contador. Foi quando o americano, de súbito, tombou ao seu lado, como se tivesse tropeçado e perdido completamente o equilíbrio. O anão, entretanto, sabia que havia algo de errado, pois a queda do comparsa viera acompanhada de um estampido seco.

Ele mal teve tempo de se virar, quando um projétil atravessou-lhe o pescoço, fazendo-lhe cair de costas no chão e guturalizar ruídos ininteligíveis enquanto o sangue inundava suas cordas vocais.

Guiado por um instinto incontrolável de apego à vida, ele ergueu a cabeça e viu dois sujeitos munidos de rifles se aproximando. Vestidos com roupas comuns, rostos deformados, logo percebeu se tratarem de leprosos, indivíduos contaminados por doses elevadas de radioatividade, condenados a uma morte sofrida e repugnante. Como não tinham nada a perder, geralmente eram bandoleiros que não apresentavam um pingo de misericórdia por suas vítimas.

Era preciso agir rápido. Quando os leprosos chegaram a uma distância mínima, o anão enfiou discretamente as mãos em sua bolsa e sacou os revólveres confeccionados pelo americano. Descarregou doze tiros nos assaltantes, cravejando umas três ou quatro balas em cada miserável. Se não os matou, certamente deixou-os incapacitados, estendidos na mais absoluta imobilidade, para a alegria dos urubus que começaram a pousar em derredor.

Sufocado, com a traqueia dilacerada, o anão ansiava por retirar o traje de proteção, mas era inútil tentar erguer o seu corpo, ainda que diminuto. Para piorar, a sede agora beirava o insuportável. Largou os revólveres e levou as mãos ao pescoço, na esperança de estancar a vertente de sangue no ferimento. Não adiantou– nada podia fazer, enclausurado dentro daquele traje.

Ao seu lado, o americano recobrava os movimentos. Hesitante, levantou-se com certo pesar. Fora atingido em algum ponto nas costas. Não parecia um ferimento letal, mas incomodava bastante.

Oh, God! — murmurou entre os dentes. — What a fucking pain!

Wargh… — ele ouviu. Um sussurro engasgado. Só então se deu conta de que o anão jazia aos seus pés. Não conseguia ver em detalhes o rosto do companheiro, mas imaginou que por trás daquele visor embaçado pelo vapor, salpicado de sangue, o coitado agonizava em virtude do tiro na garganta.

Wargh! — repetiu o pequeno homem.

O americano entendeu que o pronunciamento ininteligível do anão devia se referir a water, pois ele próprio também sofria de uma sede implacável. Mas o que fazer? Ainda estavam longe da fonte de água. Aliás, faltava percorrer metade do caminho para escapar da Chernobyl Zone. Há quanto tempo já deviam estar ali? Olhou para o contador Geiger jogado próximo ao anão. O ponteiro continuava frenético. Permanecer naquele terreno era garantir a transformação de si próprio em mais um dos leprosos. Não estava disposto a padecer daquela forma asquerosa.

Olhou mais uma vez para o rosto do anão.

Help… help… — implorava ele, aos arquejos.

Ponderou por alguns instantes. Ferido como estava, se levasse o parceiro moribundo de arrasto, perderia ainda mais tempo, expondo-se à alta carga de radiação; se o deixasse ali mesmo, condenaria o coitado a uma morte lenta e sofrida. Poderia, quem sabe, apanhar um dos revólveres e dar o tiro de misericórdia no pobre miserável… Não, fora de cogitação. Não era um assassino.

Help…

O americano retirou o radinho do bolso e depositou-o ao lado do anão, para que a música do cantor de voz fanha, que falava de uma chuva pesada prestes a devastar o solo, trouxesse-lhe um pouco de conforto até que a vida se esvaísse daquele corpinho. Então, decidido, seguiu o caminho em direção à fonte sem olhar para trás.

O anão já não sentia mais dor, já não sentia a agonia de tentar inflar os pulmões através das vias obstruídas por sangue. O pior dos flagelos, no momento, era a sede. E sequer poderia reclamar que a garganta estava seca, pensou, sorrindo da piada como para se consolar daquele fim triste e solitário. Observou que os urubus já não voavam em círculos no céu. Virou a cabeça para o lado: as aves carniceiras estavam todas ao redor de si e dos leprosos estendidos no chão. Esperavam pacientemente pela oportunidade.

Pelo menos, ele estaria protegido naquela roupa contra a radiação…


Confira uma análise detalhada desta história em forma de podcast feita pela IA:


Capa da antologia "Depois do Fim", mostrando um personagem de ficção pós-apocalíptica vestindo máscara de proteção.

Este conto foi publicado originalmente na antologia “Depois do fim”, lançado pela Cartola Editora em 2020. A coletânea possui dezenas de histórias de diferentes autores sobre a temática de ficção pós-apocalítica.

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